Escravo, nem pensar! previne mais de 600 mil pessoas do trabalho escravo no MA e no TO

Iniciativa contempla metas de políticas públicas estaduais e nacional para a erradicação do problema

Em 2021, a Repórter Brasil concluiu as últimas etapas do programa Escravo, nem pensar! (ENP!) de prevenção ao trabalho escravo nas redes públicas de ensino do Maranhão e do Tocantins, implementando projetos pedagógicos sobre o tema em 880 escolas estaduais. Com o resultado, 75% dos municípios do Maranhão e 85% do Tocantins foram contemplados pelo projeto desde a primeira etapa realizada em cada estado, em 2015 e 2018, respectivamente. Os números representam 163 dos 217 municípios maranhenses e 118 dos 139 tocantinenses. As principais ações do programa podem ser conferidas nos cadernos pedagógicos publicados pelo ENP!.

Foto da capa do caderno pedagógico Escravo, nem pensar! no Tocantins (2021)

Foto da capa do caderno pedagógico Escravo, nem pensar! no Maranhão (2019-2021)

No Maranhão, 383.214 pessoas foram prevenidas do trabalho escravo, entre estudantes, professores, demais funcionários das escolas e pessoas das comunidades do entorno. Ao todo, 491 unidades escolares foram contempladas ao longo das três edições do projeto, realizadas em 2015/2016, 2018  e 2021. Em 2015, o estado foi pioneiro em adotar a metodologia do Escravo, nem pensar! voltada à formação de gestores e técnicos pedagógicos de Unidades Regionais de Educação (URE), que são unidades descentralizadas da secretaria de educação responsáveis por gerenciar as escolas estaduais em seus territórios. 

Com a terceira edição do projeto, concluída em 2021, representantes de todas as 19 UREs do estado foram formados pelo ENP!. Esses profissionais foram responsáveis por multiplicar referências e materiais didáticos para os professores que, por sua vez, elaboraram projetos pedagógicos sobre trabalho escravo e assuntos correlatos com os estudantes. 

“O ENP! é um projeto muito importante. Ele vem sendo desenvolvido nas escolas de nossa rede e o maior legado que ele deixa para a educação maranhense é o trabalho de conscientização, pois cada estudante alcançado com a iniciativa é uma voz a mais que se levanta em defesa do debate contra o trabalho escravo.”, frisa Felipe Camarão, secretário de Educação do Maranhão.

Para Jefferson Gomes Lima, aluno do Centro de Ensino Professor Oliveira Roma, situado em Mata Roma (MA), “o projeto deixa grande legado intelectual aos alunos, ajudando no aprimoramento de seu pensamento crítico, uma vez que, por meio da divulgação de conhecimento sobre formas de exploração, as chances de caírem no ciclo do trabalho escravo diminui consideravelmente”. 

Alunos da E. E. Major Juvenal Pereira de Souza realizam passeata para alertar a população sobre o trabalho escravo. Tabocão (TO), 2021. Foto: Seduc-TO

No Tocantins, 389 escolas estaduais desenvolveram atividades e projetos pedagógicos sobre o tema, alcançando 218.908 pessoas. Foram formados representantes das 13 DREs (Diretorias Regionais de Educação, equivalentes às UREs) do estado em duas etapas, em 2018 e 2021. A rede estadual tocantinense se destacou por também envolver no projeto escolas que atendem diferentes perfis de estudantes, como os indígenas, além de unidades vinculadas a APAEs (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e ao sistema prisional, reforçando o caráter inclusivo e modular da metodologia proposta pelo ENP!.  

“O projeto ENP! despertou a importância e a necessidade de trabalhar essa temática dentro da proposta pedagógica. Assim, contribuiu para a conscientização da comunidade escolar e local”, enfatizam Maria Rita Amaral e Sandra José da Silva, técnicas pedagógicas da DRE Guaraí. 

As apresentações dos resultados, que incluem dados das edições finais, aconteceram em Palmas (TO) e em São Luís (MA), no final de 2021, com a participação de educadores e representantes das instituições do poder público e da sociedade civil envolvidas nas ações. 

Mesa de encerramento em São Luís (MA). Da direita para a esquerda: Francisco Gonçalves, secretário de Estado de Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão; Nadya Dutra, secretária adjunta de Educação do Maranhão; Brígida Rocha, agente da Comissão Pastoral da Terra; e Natália Suzuki, coordenadora do programa Escravo, nem pensar!. Foto: Seduc-MA

Educação a distância

Passeatas, panfletagem e eventos culturais são algumas das atividades frequentemente organizadas pelas escolas que compõem a rede ENP! para alertar a população sobre o trabalho escravo. Em 2020 e 2021, contudo, diante das restrições impostas pela pandemia, estudantes e professores adotaram estratégias criativas e inovadoras para garantir a disseminação de informações a respeito dessa prática criminosa, como a gravação de vídeos informativos, o uso de mídias sociais e a elaboração de roteiros de estudo impressos, assegurando também o alcance de comunidades com acesso limitado à internet. 

Trecho de vídeo produzido por estudantes do C. E. Maria Luiza Novaes Viana. Buriti (MA), 2021. Foto: Reprodução

“A pandemia agravou a condição de vulnerabilidade socioeconômica de parcela substantiva da população, tornando-a mais suscetível a violações como o trabalho escravo. Diante disso, o ENP! adaptou sua metodologia para atender ao contexto híbrido, garantindo que o problema continuasse em pauta nas escolas e nas comunidades”, afirma Natália Suzuki, coordenadora do programa Escravo, nem pensar!. 

“No Maranhão, os resultados do Escravo, nem pensar! foram muito bons, mesmo com a pandemia, que atrapalhou alguns planos. Mas o retorno e os resultados que eu recebi, principalmente das UREs que participaram, foi muito bom. Isso causou um impacto significativo na vida das pessoas envolvidas com o programa, porque levou à conscientização e à sensibilização sobre o tema para quem percebe o trabalho escravo no dia a dia”, reforça Erik Ferraz, oficial de projeto da Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituição apoiadora da iniciativa.

Política pública

“Não se pode cogitar a erradicação do trabalho escravo contemporâneo sem políticas públicas e programas sociais voltados à prevenção dessa prática. No estado do Tocantins, onde prepondera a concentração fundiária e de renda, o programa Escravo, nem pensar! robustece o propósito transformador da educação, sobretudo em comunidades com maior vulnerabilidade socioeconômica, cumprindo um papel fundamental para a ruptura do ciclo de superexploração do trabalhador”, pontua Gisela Nabuco, procuradora do trabalho do Ministério Público do Trabalho da 10ª Região, que apoia o projeto no Tocantins. 

A implementação do projeto atende a metas específicas do 2º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e dos planos estaduais do Maranhão (2012) e do Tocantins (2007), que tratam de ações preventivas voltadas à formação de servidores públicos da área da educação. 

Legado

Como decorrência das discussões sobre trabalho escravo pautadas pela Repórter Brasil ao implementar o projeto Escravo, nem pensar!, ambas as redes estaduais de ensino institucionalizaram o tema em seus currículos. No Maranhão, desde 2017 o trabalho escravo é componente curricular nas disciplinas de História e Sociologia. Por sua vez, a rede estadual do Tocantins incluiu a temática como conteúdo obrigatório da disciplina de História em 2019. Tais iniciativas garantem a sustentabilidade das ações nas redes de ensino e, sobretudo, asseguram que as próximas gerações de estudantes e de trabalhadores sejam prevenidas do trabalho escravo.

Parcerias com a sociedade civil

A implementação do projeto Escravo, nem pensar! foi respaldada por uma importante e consolidada rede de atores locais comprometidos em erradicar o problema, como o Centro de Defesa da Vida Carmén Báscaran e o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Santa Luzia, no Maranhão, e a Comissão Pastoral da Terra, que atua em ambos os estados. Tais entidades possuem longo histórico de trabalho na defesa de vítimas de trabalho escravo e colaboraram de maneira significativa para as experiências escolares, por meio de atividades como palestras e seminários organizados para estudantes e a comunidade. Ao mesmo tempo, o amplo alcance da rede de educação contribuiu para a sensibilização realizada pelas organizações. Assim, escolas e sociedade civil tornaram-se grandes aliadas na luta contra o trabalho escravo no Maranhão e no Tocantins. 

“Hoje, o Centro de Defesa não concebe fazer um Encontro de Trabalhadores Resgatados do Trabalho Escravo, que realizamos desde 2014, sem contar com a participação das escolas, seja na arrecadação de cestas básicas para as famílias, seja através de saraus e noites culturais para animar os encontros e levar essa temática [à tona] por meio da arte-denúncia”, destaca Mariana de La Fuente, secretária executiva do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Cármen Báscaran.

Estudantes da E. E. Welder Maria de Abreu Sales recebem palestra de agente da Comissão Pastoral da Terra. Araguaína (TO), 2018. Foto: Seduc-TO

“Acho fundamental que nossos formandos possam encontrar no âmbito escolar uma informação séria que os alerte sobre o risco do trabalho escravo ainda hoje, aqui no Tocantins. Ainda mais quando verificamos, ano após ano, uma gradual invisibilização desta prática, embora todos nós saibamos que ela não acabou. Fundamental portanto é o trabalho de longo prazo impulsionado aqui pelo programa Escravo, nem pensar! e, a partir da escola, sua penetração nas famílias. Oxalá possamos continuar instigando nosso povo, nossos jovens, para a vigilância, e incentivá-lo a denunciar”, complementa Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional da CPT contra o trabalho escravo. 

Trabalho escravo no Maranhão

O Maranhão é a principal origem de trabalhadores que acabam em situação de trabalho escravo no Brasil. Quase um quarto (22%) de todos os resgatados no país são maranhenses, porcentagem que representa 8.339 trabalhadores no período entre 2003 e 2020, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência. O estado é ainda foco de exploração em seu próprio território, sendo o 4º do ranking nacional de casos de trabalho escravo (206 registros). O problema acontece predominantemente em atividades rurais como a pecuária e a produção de carvão vegetal. 

“A importância do projeto Escravo nem pensar! se acentua fortemente no Maranhão exatamente por ser um dos estados mais pobres do Brasil, em que boa parte da população convive com diversos tipos de violência já naturalizados no cotidiano de forma sistematizada, inclusive o trabalho escravo”, destaca Virgínia Neves, procuradora do trabalho do Ministério Público do Trabalho, instituição apoiadora do projeto. 

Trabalho escravo no Tocantins 

O Tocantins figura na 7ª colocação no ranking de estados por número de trabalhadores resgatados no Brasil no período entre 1995 e 2021: são 3.012 pessoas libertadas em 161 casos. O estado é caracterizado ainda por ser foco de aliciamento de trabalhadores que acabam explorados em outras regiões do país, ficando também em 7º lugar no ranking de naturalidade dos trabalhadores libertados. Entre 2003 e 2020, 1.955 tocantinenses foram resgatados em todo o território nacional.

O trabalho escravo no Tocantins não está concentrado em uma região específica, mas disseminado pelo estado. Dos 139 municípios tocantinenses, 59 (42%) já tiveram casos de trabalho escravo registrados. Assim como no Maranhão, são casos ligados a atividades rurais, sobretudo manutenção de propriedades agropecuárias, produção de carvão vegetal e trabalho em lavouras diversas.