“Eu voltei a falar”

Conheça a história de vida de Maria Oneide Costa Lima, educadora de São Geraldo do Araguaia (Pará), que encontrou na parceira com o Escravo, nem pensar!  um meio de superar as marcas da perseguição por sua luta pela terra.

Por Carolina Motoki

Vou convidar Oneide, Rosa, Ana Maria,
A mulher que noite e dia
luta e faz nascer o amor
E reunidos no altar da liberdade
Vamos cantar de verdade
Vamos pisar sobre a dor, ê ê!
[“Gente nova”, de Zé Vicente, canto das CEBs]

oneideMaio de 1980, Araguaína, norte goiano, hoje Tocantins. Três tiros encomendados por um consórcio de prefeitos e fazendeiros arrancaram a vida de Raimundo Ferreira Lima. Gringo, como era conhecido, era sindicalista. E também marido e pai. Em São Geraldo do Araguaia, Oneide ficou sozinha aos 30 anos para criar os seis filhos – o mais novo tinha nove meses e o mais velho, 12 anos. Na região, muitas famílias de sindicalistas ficaram órfãs, como a de Gringo: a de Expedito Ribeiro e a de João Canuto, em Rio Maria, no Pará, e de outros tantos que tombaram na mesma luta pela terra.

Antes, a população já sofrera intensa repressão: bases do Exército foram instaladas para dar fim à Guerrilha do Araguaia. Oneide e Gringo conviveram com os guerrilheiros e viram padres, militantes e camponeses serem presos, torturados, mortos. Em uma madrugada, tiveram de fugir de barco e se refugiar em São Félix do Araguaia, nordeste de Mato Grosso, entre 1970 e 1972, pois Gringo poderia ser acusado de ser terrorista e subversivo por “gostar de ler e saber da lei”. O exílio forçado possibilitou a convivência com Dom Pedro Casaldáliga, bispo de
São Félix, e a formação nas Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs. “Foi a partir daí que começamos esse espírito de luta”, afirma Oneide.

Após a morte de Gringo, ela foi trabalhar com os padres franceses Aristides Camio e Chico Gouriou, na Comissão Pastoral da Terra. “Quando ele morreu, eu falei: vou vingar a morte dele fazendo o que ele fazia. Ele não tinha medo, e eu também não vou ter medo”, relembra. E enfrentou os inimigos.

Foi difamada. Panfletos de maledicência foram atirados de avião sobre todas as comunidades da região. Camponeses que não sabiam ler os penduraram na parede, pois acharam bonita a fotografia daquela mulher de luta. E, quando sabiam do seu conteúdo pela própria Oneide, ajudavam-na a rasgar o material.

Foi presa na própria casa. Não podia sair para nada, um policial a vigiava. Teve suas memórias roubadas, quando levaram um álbum de fotografias e outro de recortes com as notícias da morte do marido, que guardava para mostrar aos filhos quando crescessem.

Foi perseguida. E ameaçada de que não sobraria nem uma galinha viva no terreiro para contar a história. Foi silenciada. Além da violência do Estado, a pistolagem era lei nos conflitos de terra. E Oneide sabia melhor do que ninguém que as ameaças se tornavam realidade. “Fiquei com medo de eles me matarem, e os meninos ficarem sem pai, sem mãe. Aí, eu dei um tempo.” Cinco anos depois da morte do marido, Oneide se calou, e, como professora, encontrou na escola Raimundo Ferreira Lima, nome de Gringo, um refúgio. A escola está localizada na zona urbana do município de São Geraldo do Araguaia, no sul do Pará. Anos mais tarde, em 2007, com a proposta de levantar a discussão sobre trabalho escravo na escola, Oneide viu a chance de voltar a falar. “Fiquei calada mais de dez anos. Os meus filhos falavam que não estavam me reconhecendo. Quando eu participei do Escravo, nem pensar!, pensei: ‘É uma maneira de eu falar, através desse projeto’. E comecei a voltar a ser como era antes.”

A escola, que recebe muitos alunos da zona rural, realizou três projetos sobre o tema do trabalho escravo, apoiados pelo ENP!, e se tornou uma referência. A partir do debate em sala de aula sobre direitos, alunos que trabalhavam nos comércios da cidade se organizaram para denunciar as irregularidades trabalhistas que impediam a continuidade dos seus estudos. Durante as discussões, um aluno e alguns pais se reconheceram na situação de trabalho escravo. Havia também parentes de professoras que trabalhavam na administração de fazendas, inclusive autuadas pelo Ministério do Trabalho.

A realidade estava ali, na sua frente, a ser descortinada e desconstruída. E, passados tantos anos, Oneide reencontrou a forma de manter Gringo vivo e presente, não só no nome da escola, mas também na luta a que se dedica, enquanto ela mesma renasce. E segue firme, pisando sobre a dor, em busca da liberdade.

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Você pode ver essa e outras histórias de educadores da rede do ENP! no livro Escravo, nem pensar! 10 anos: Memória e Registro.

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