O trabalho escravo no Brasil

O trabalho escravo é uma grave violação de direitos humanos que restringe a liberdade do indivíduo e atenta contra a sua dignidade. O fenômeno é distinto da escravidão dos períodos colonial e imperial, quando as vítimas eram presas a correntes e açoitadas no pelourinho. Hoje, o trabalho escravo é um crime expresso no Artigo 149 do Código Penal, conforme a seguinte definição legal:

Código Penal Brasileiro

Artigo 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalhando, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena- reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem:
I- cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra a criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor etnia, religião ou origem.

De forma mais simples, o termo trabalho escravo contemporâneo é usado no Brasil para designar a situação em que a pessoa está submetida a trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívidas e/ou condições degradantes. Não é necessário que os quatro elementos estejam presentes: apenas um deles é suficiente para configurar a exploração de trabalho escravo.

  • Trabalho forçado: o trabalhador é submetido à exploração, sem possibilidade de deixar o local por causa de dívidas, violência física ou psicológica ou outros meios usados para manter a pessoa trabalhando. Em alguns casos, o trabalhador se encontra em local de difícil acesso, dezenas de quilômetros distante da cidade, isolado geograficamente e longe de sua família e de uma rede de proteção. Em outros, os salários não são pagos até que se finalize a empreitada, e o trabalhador permanece no serviço com a esperança de, um dia, receber. Há ainda os casos em que os documentos pessoais são retidos pelo empregador, e o trabalhador se vê impedido de deixar o local.
  • Jornada exaustiva: não se trata somente de um excesso de horas extras não pagas. É um expediente desgastante que coloca em risco a integridade física e a saúde do trabalhador, já que o intervalo entre as jornadas é insuficiente para que possa recuperar suas forças. Há casos em que o descanso semanal não é respeitado. Assim, o trabalhador também fica impedido de manter vida social e familiar e corre mais riscos de adoecimento físico e mental.
  • Servidão por dívidas: fabricação de dívidas ilegais referentes a gastos com transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho para “prender” o trabalhador ao local de trabalho. Esses itens são cobrados de forma abusiva e arbitrária para, então, serem descontados do salário do trabalhador, que permanece sempre endividado. Por uma questão de honra, os trabalhadores permanecem no trabalho, ainda que a suposta dívida seja fraudulenta e se torne impagável.
  • Condições degradantes: um conjunto de elementos irregulares que caracterizam a precariedade do trabalho e das condições de vida do trabalhador, atentando contra a sua dignidade. Frequentemente, esses elementos se referem a alojamento precário, péssima alimentação, falta de assistência médica, ausência de saneamento básico e água potável; não raro, são constatadas também situações de maus-tratos e ameaças físicas e psicológicas.

O governo federal brasileiro assumiu a existência do trabalho escravo contemporâneo perante o país e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1995. Assim, o Brasil se tornou uma das primeiras nações do mundo a reconhecer oficialmente a ocorrência do problema em seu território. De 1995 até 2021, mais de 57 mil trabalhadores foram libertados de situações análogas a de escravidão em atividades nas zonas rural e urbana. Confira o depoimento de um trabalhador escravizado.

No Brasil, 95% das pessoas submetidas ao trabalho escravo são homens. Geralmente, as atividades para as quais esse tipo de mão de obra é utilizado exigem força física, por isso os aliciadores buscam principalmente homens e jovens. Por outro lado, mulheres também são recorrentemente expostas a essa prática criminosa. Apesar de representarem somente 5% dos resgatados na média nacional, há contextos em que as mulheres compreendem parcela significativa do total, como no setor têxtil em São Paulo, além de estarem sujeitas a subnotificação em atividades como o trabalho doméstico e sexual. Saiba mais sobre as trabalhadoras escravizadas no Brasil.

Os dados oficiais do Programa Seguro-Desemprego registrados de 2003 a 2020 indicam que, entre os trabalhadores libertados, 68% são analfabetos ou não concluíram nem o 5º ano do Ensino Fundamental. Há também uma disparidade racial relevante entre os escravizados: mais da metade (58%) é negro, sendo 45% pardos e 13% pretos. Os trabalhadores rurais libertados são, em sua maioria, migrantes internos, que deixaram suas casas com destino à região de expansão agrícola e se empregaram em atividades como a pecuária, a produção de carvão, o desmatamento e o cultivo de cana-de-açúcar, soja, algodão, café e outras lavouras.

Já no meio urbano, desde de 2010 têm crescido o número de trabalhadores escravizados em setores como a confecção têxtil, os quais são, em sua maioria, migrantes internacionais oriundos de países da América Latina, como Bolívia, Paraguai e Peru. Nesse período também foram registrados casos recorrentes na construção civil, com libertações de migrantes internos. O mais recente fluxo de haitianos e venezuelanos para o Brasil também já tem resultado no resgate de trabalhadores desses países em território nacional. No geral, os trabalhadores submetidos ao trabalho escravo são migrantes, brasileiros ou de outros países, que deixam seus locais de origem atraídos por falsas promessas de trabalho e/ou migram forçadamente em razão de condições socioeconômicas precárias.

Com o objetivo de erradicar o trabalho escravo, o Estado brasileiro tem historicamente centrado esforços na repressão ao crime, dedicando-se a medidas como a fiscalização de propriedades privadas, a restituição dos direitos dos trabalhadores resgatados e a punição administrativa, econômica e criminal dos empregadores flagrados utilizando-se dessa prática.

Ainda que essas ações sejam fundamentais para libertar os trabalhadores e sancionar os responsáveis, elas são insuficientes para erradicar a prática do trabalho escravo. A erradicação do trabalho escravo deve passar também pela criação de políticas públicas articuladas que contemplem a assistência à vítima e a prevenção ao problema, de forma que os trabalhadores possam se desvincular da situação de exploração à qual estão ou possam estar submetidos. Dentre as políticas de prevenção, estão as ações afirmativas no âmbito da Educação.

Com esse tipo de iniciativa, realizado por meio da construção de processos formativos, divulgação de informações e promoção de debates sobre trabalho escravo, as comunidades alcançadas se tornam preparadas para enfrentar o problema e denunciar práticas exploratórias.

Assim, desde 2004 o programa Escravo, nem pensar! tem voltado as suas atividades para servidores públicos, principalmente aqueles da Educação e da Assistência Social. O contato direto desses profissionais com comunidades vulneráveis e a sua capilaridade no território amplia o alcance das ações do programa e mobiliza atores sociais locais, os quais, juntos, são capazes de compor uma rede engajada de enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo.

Assista à animação “Ciclo do trabalho escravo contemporâneo” e saiba mais sobre como erradicar essa prática criminosa:

Mais informações

Para se aprofundar no trabalho escravo contemporâneo e outros temas correlatos, confira e baixe nosso conjunto de materiais didáticos, disponíveis na seção Biblioteca.

Glossário de conceitos relacionados à temática do trabalho escravo*

Abono: adiantamento em dinheiro que o “gato” dá à família do trabalhador no momento em que ele é contratado.

Acero: limpeza ao longo do caminho da cerca na fazenda. Aliciar: seduzir, enganar,envolver.

Apanhar de pano: o mesmo que panada, ou seja, levar surra com o lado cego do facão.

Badequeiro: trabalhador que limpa as lâminas do trator em movimento, tirando barro, pedras ou galhos que ficam presos à grade.

Baladeira: rede de dormir.

Cantina: o mesmo que armazém, onde são vendidas as mercadorias da fazenda.

Cerqueiro: aquele que faz as cercas da fazenda.

Cega jumento: planta que solta um pelo que cega os roçadores, principalmente as crianças que, por serem mais baixas, são atingidas nos olhos.

Cuca: é o cozinheiro da fazenda. Vem da palavra “mestre-cuca”.

Diarista: trabalhador que ganha por dia de trabalho, independentemente da produção. Também não tem direitos garantidos.

Doutor da enxada: é como se chamam os peões que usam bem a enxada e rendem bastante no trabalho.

Fechar: matar alguém.

Gato: aquele que alicia a mão de obra para o trabalho nas fazendas. Também é conhecido como empreiteiro ou empeleiteiro.

Gambira: troca de um objeto por outro.

Motoqueiro: operador de motosserra.

Peão: trabalhador braçal.

Peão de trecho: trabalhador que não consegue sair da escravidão. Está sempre de trecho em trecho, mudando de uma fazenda pra outra. Também chamado de trecheiro.

Peonagem: outro nome para a nova escravidão no Brasil.

Salário cativo: quando o trabalhador paga pela sua comida.

Salário livre: a comida não é cobrada do trabalhador, mas seu salário é menor que o do cativo. Dessa maneira, a situação é a mesma: o trabalhador gasta mais do que o que ganha para poder comprar o que precisa na cantina.

Taca: surra violenta com chutes e pauladas.

*Baseado em pesquisa da coordenadora do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, Marinalva Cardoso Dantas.