RHBN: Passado atual, presente eterno
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Relato do século XVIII, gravura do XIX, fotografia do XXI… diferentes fontes e épocas podem ensinar a escravidão no Brasil
Por Jairo Carvalho do Nascimento
“Tudo quanto o homem diz ou escreve, tudo quanto fabrica, tudo em que toca pode e deve informar a seu respeito”. A frase do historiador francês Marc Bloch (1886-1944) mostra como pode ser ampla a noção de documento ou fonte. Diante da dúvida do que pode ser considerado material para o ensino de história, a resposta é simples: tudo. Filmes, músicas, charges, folhetos de cordel, jornais, livros…
Para lidar com a multiplicidade de documentos à sua disposição, o professor precisa assumir uma postura interdisciplinar e ser movido pela curiosidade intelectual. O uso didático de diferentes formatos e suportes requer criatividade e inovação metodológica.
Uma boa ideia é usar a dinâmica de “confronto de documentos”. Em vez de analisar um documento apenas, o professor pode selecionar dois, que tenham a mesma temática, mas se reportem a tempos e espaços diferentes. O tema da escravidão no Brasil, por exemplo, pode ser trabalhado desta forma desde o ensino fundamental até os cursos superiores de História. O livro Cultura e opulência do Brasil é um dos documentos passíveis de serem trabalhados a partir da seleção de alguns trechos. Escrito por André João Antonil – pseudônimo de João Antônio Andreoni, um clérigo da Companhia de Jesus que viveu na Bahia – o livro foi editado em 1711, depois proibido pela Coroa portuguesa, e publicado integralmente no Brasil em 1837. Ele traça um panorama da sociedade colonial, abordando a economia, a organização do trabalho escravo e as riquezas minerais.
É de Antonil o seguinte trecho: “Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles, no Brasil, não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo com que se há com eles depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso, é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas / No Brasil costumam dizer que para o escravo são precisos três PPP, a saber, pau, pão e pano / Não castigar os excessos que eles cometem seria culpa não leve, porém, estes se hão-de averiguar antes, para não castigar inocentes, e se hão-de ouvir os delatados e convencidos, castigar-se-ão com açoites moderados ou com os meter em uma corrente de ferro, por algum tempo, ou tronco” [Ver “Especial Antonil”, RHBN nº 71].
O autor revela três pontos importantes para discussão: a importância que o escravo tinha para a economia colonial, atuando nos mais diversos setores da produção; o escravo como mercadoria; e o castigo contra os escravos. O professor pode instigar os alunos a apontarem essas questões no documento. Vale lembrar que a historiografia mais recente sobre a escravidão vem trazendo novos olhares sobre o período colonial, analisando o escravo como sujeito (e não como uma “peça”), a existência de famílias no cativeiro e o quilombo como um espaço que interagia com o resto da sociedade. A atenção a essas renovações é imprescindível para enriquecer o debate em sala de aula.
Para tratar do mesmo tema, um documento a ser usado é um trecho de reportagem jornalística, como a publicada em 2002 por Leonardo Sakamoto, na revista Problemas Brasileiros, que noticia a atuação do Ministério do Trabalho contra “formas contemporâneas” de trabalho escravo: “Nos dias 13 e 14 de dezembro passado, foram resgatados 54 trabalhadores rurais que estavam sob condições degradantes de trabalho na fazenda Peruano, município de Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará. A ação (…) foi motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da liberdade. Pessoas não eram pagas havia meses, recebendo apenas arroz, feijão e alojamento – pequenas barracas de madeira, palha ou lona, em que se amontoavam 10, 20 redes. A água, suja e imprópria, servia para consumo, banho e lavagem de roupa. A pele de Manuel se transformou em couro, curtida anos a fio pelo sol da Amazônia e pelo suor de seu rosto. ‘Fizeram açude para o gado beber e nós bebíamos e usávamos também’. Trabalhava de domingo a domingo, mas nada de pagamento, só feijão, arroz e a lona para cobrir-se de noite. Um outro tipo de cerca, com farpas que iam mais fundo, o impedia de desistir: ‘O fiscal de serviço andava armado. Se o pessoal quisesse ir embora sem terminar a tarefa, eles ameaçavam, e aí o sujeito voltava’. Na hora de acertar as contas, os gatos informaram que Manuel e os outros tinham ‘comido’ todo o pagamento e, se quisessem dinheiro, teriam de ficar e trabalhar mais”.
Ao ler e refletir sobre essa “forma moderna de escravidão” – caracterizada pelo cerceamento da liberdade, maus-tratos e violência física – o aluno é motivado a comparar os dois documentos. Cabe ao professor orientar o debate, destacando semelhanças e diferenças. Relações de trabalho e de poder, desigualdades de classe, analfabetismo e desconhecimento dos próprios direitos são fatores sujeitos a transformações e continuidades, em sintonia com as formas de pensar e agir em cada época.
O mesmo tipo de comparação pode ser feita por meio de imagens. O que nos diz a leitura da gravura “Navio negreiro”,do pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), em contraste com a fotografia “Acampamento de trabalhadores”, divulgada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Estado do Amazonas, postada no site do jornal A Crítica, de Manaus? A primeira foi produzida no século XIX e integrou o livro Voyage Pittoresque dans le Brésil (1827-1835), a segunda veio a público em 3 de dezembro de 2010, ilustrando a reportagem “Operação combate trabalho escravo no Sul do Amazonas”. Rugendas mostra o interior do porão de um navio negreiro, com escravos seminus, acorrentados e amontoados como animais. Com condições precárias de higiene e mal alimentados, muitos morriam durante a viagem. Na fotografia contemporânea, vemos um rancho improvisado, sem higiene, em chão de terra batida, sem local apropriado para dormir ou comer. Ali viviam 11 homens sujeitos a trabalho forçado, em uma fazenda do município de Lábrea, interior do Amazonas.
As duas imagens evocam valores humanos (ou desumanos) fundamentais para a compreensão da história, ontem e hoje: assemelham-se às condições degradantes a que estão submetidos os escravos do século XIX e os trabalhadores do século XXI. Para aprofundar a discussão, o professor pode sugerir que os alunos procurem ilustrações do interior de uma senzala e as comparem com este e outros acampamentos de trabalhadores, e que leiam o poema “Navionegreiro”, de Castro Alves.
A escravidão no Brasil acabou oficialmente no dia 13 de maio de 1888. Seria anacrônico falar em escravidão em pleno século XXI. Expressões mais adequadas seriam “trabalho forçado”ou“novas formas contemporâneas de escravidão”. Ainda assim, o que existe hoje é um tipo de trabalho “comparável”, em alguns aspectos, ao tempo da escravidão, em que trabalhadores não têm direitos, ficam presos em propriedades vigiadas por pistoleiros, com jornadas de trabalho exaustivas, além de adquirirem uma dívida impagável para com o patrão. Este cenário é muito comum de se encontrar nos grandes latifúndios da região Norte. A Organização Internacional do Trabalho acredita que existam quase 12 milhões de pessoas, em todo o mundo, submetidas à condição de trabalho forçado. No Brasil, segundo estimativas da Comissão Pastoral da Terra, milhares de pessoas, inclusive crianças, encontram-se em algum tipo de trabalho escravo.
Para cada atividade deste tipo é necessário elaborar um texto de orientação para os alunos, contendo informações sobre os autores, as datas e a natureza ou a finalidade dos documentos, além de questões que os ajudem a “decifrar” o que comparam: Quais as semelhanças e as diferenças entre os documentos? Em que contexto foram produzidos? Que sujeitos aparecem? Como se desenvolvem as suas relações de poder?
A comparação entre fontes históricas revela que a escravidão não é uma prática morta e enterrada no passado, mas que determinadas características e situações concretas de trabalho compulsório encontram-se presentes ainda hoje. Que discursos e mecanismos justificam que formas de trabalho forçadas ou degradantes tenham chegado até o presente, a uma realidade social tão próxima do aluno? Eles próprios são convidados a refletir e a se questionar sobre isso.
Jairo Carvalho do Nascimentoé professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb/Campus VI) e autor de “Cinema e ensino de História: realidade escolar, propostas e práticas na sala de aula” (Revista Fênix, v. 5, n. 4, 2008).
Filmes, cordéis e o que mais houver
Um suporte cultural muito apreciado pelos jovens são os filmes, e eles têm grandes potencialidades informativas. Em A negação do Brasil (2000), Joel Zito Araújo elabora um bom quadro da história do negro na telenovela brasileira, mostrando os dramas e os preconceitos sofridos por atores e atrizes em suas carreiras. Este filme pode ser utilizado para analisar a questão racial hoje, “puxando o gancho” para se questionar a tese do mito da democracia racial brasileira e discutir a política de ações afirmativas, como as cotas raciais e as bolsas de estudos para negros, ou medidas de valorização identitárias para comunidades quilombolas.
Já o folheto de cordel, expressão poética popular do Nordeste, é uma fonte capaz de servir de inspiração para que os alunos elaborem seus próprios contos e folhetos, com temas como a história do Quilombo dos Palmares ou a questão das cotas raciais nas universidades brasileiras. Outra ideia legal é montar um acervo no computador com indicações de vários tipos e títulos de documentos sobre a escravidão. Na hora oportuna, é só selecionar o documento, montar seu planejamento e mãos à obra. Inovação, criatividade e competência: receita para uma boa aula.
Saiba mais – Bibliografia
FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2005.
GOMES, Flávio & REIS, J.J. (orgs.). Liberdade por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LARA, Sílvia H. & MENDONÇA, Joseli Maria N. (orgs.). Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história social. Campinas, SP: Unicamp, 2006.
PINSKY, Carla B. (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2004.
Filmes
A negação do Brasil(Joel Zito Araújo, 2000)
Besouro(João Daniel Tikhomiroff, 2009)
Cafundó(Paulo Betti e Clóvis Bueno, 2005)
Quilombo(Cacá Diegues, 1984)
Sites
Laboratório de Ensino e Material Didático (USP)
Oficinas de História
www.oficinasdehistoria.com.br/(Uerj)
Programa “Escravos, nem pensar”
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/ Edusp, 1982. (Coleção Reconquista do Brasil).
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000026.pdf