PEC do Trabalho Escravo é aprovada no Congresso
Câmara dos Deputados aprova expropriação e confisco de terras em que há trabalho escravo. Proposta será votada pelo Senado
Na noite da última terça-feira, dia 22, a Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001 em segundo turno de votação. Do total de 414 parlamentares, 360 foram a favor da PEC, 29 votaram contra e 25 se abstiveram. O resultado parece ter sido uma vitória fácil, no entanto ela não reflete a disputa acirrada que se deu até o último momento nos bastidores do Congresso.
Desde 2004, a proposta, que prevê a expropriação e confisco da terra daqueles que empregam trabalho escravo em suas propriedades, sem direito à indenização, como propõe a PEC, esteve emperrada no Congresso. Os adiamentos sucessivos da votação, decorrentes dos esforços de alguns parlamentares, sempre foi a forma mais elegante de defender os interesses da classe ruralista e, assim, perpetuar a escravidão contemporânea no país.
A relatora especial da ONU para Formas Contemporâneas de Escravidão, Gulnara Shahinian definiu a PEC como “o instrumento legal mais poderoso de combate ao trabalho escravo no Brasil”. Além de esse mecanismo ser capaz de fazer o país vencer a impunidade dos escravagistas, uma das principais lacunas das estratégias de combate à escravidão contemporânea, a emenda contraria a lógica da organização fundiária imposta ao campo há mais de 500 anos no país.
A proposta passará ainda por mais um round para, então, assinada definitivamente. Ele segue para ser votada pelo Senado. A tramitação da PEC no Congresso é sempre acompanhada pela iminência de revisão do conceito de trabalho escravo contemporâneo. Todas as vezes em que há oportunidade, membros da bancada ruralista tentam em colocar em xeque aquilo que há muito já está consolidado
O artigo 149 do Código Penal define claramente que a prática é crime. A lei deixa explícito que submeter alguém a condições análogas a de escravos é cercear a sua liberdade por meio de ameaças, endividamento e isolamento e/ou submeter trabalhadores a condições degradantes. Condições degradantes não significam deixar de assinar a carteira de trabalho ou dar colchão fino para o trabalhador e, muito menos, não lhes fornecer copos plásticos, mas se referem a situações desumanas de trabalho que atentam contra a dignidade do indivíduo.
O conceito de trabalho escravo contemporâneo expresso no artigo 149 permitiu resgatar mais de 42 mil trabalhadores submetidos a situações inimagináveis de humilhação e exploração, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego. A mesma lei é usada para indiciar criminalmente aqueles que empregam mão de obra escrava, como aconteceu um senador neste ano, quando o STF o colocou no banco dos réus por aliciar e empregar 35 pessoas em regime de escravidão no interior do Pará.
A Organização Internacional do Trabalho avalia que o Brasil vem criando mecanismos inovadores e coerentes com as determinações dos tratados internacionais dos quais é signatário. Esses instrumentos, entre os quais o artigo 149, são considerados referências para outros países.
A partir do conceito vigente e com a participação e esforço da sociedade civil, há mais de uma década, políticas públicas de prevenção, assistência à vítima e repressão têm sido criadas; casos foram julgados, criando jurisprudência em diversas instâncias da rígida estrutura judiciária. Tudo isso sem que houvesse qualquer dúvida sobre a definição do trabalho escravo contemporâneo, agora contestada.
Hoje, os escravos não são acorrentados no tronco ou açoitados no pelourinho. Mas como classificar, senão como escravidão, a condição desumana a que milhares de trabalhadores são submetidos? Reduzir violações de direitos humanos, como a superexploração do trabalho, o cerceamento de liberdade, as ameaças de morte e os castigos exemplares, a irregularidades trabalhistas é algo descabido. Portanto, não cabe apelar para que uma nova princesa Isabel venha ao Congresso com uma pena em punho para reafirmar a Lei Áurea. É preciso mais que isso.
Nos últimos oito anos, a ONG Repórter Brasil desenvolve trabalho de prevenção por meio da educação em cinquenta municípios onde há grande quantidade de casos de aliciamento e trabalho escravo. Um dos maiores desafios tem sido desnaturalizar nas comunidades o processo de exploração que há séculos está arraigado em determinadas regiões do país, onde o coronelismo deixou raízes profundas. Como é possível o trabalhador se reconhecer como vítima de um sistema atroz se mais uma vez dizemos que a única escravidão existente é aquela que o prende por correntes? Como é possível, então, ele superar a sua condição indigna se os alguns deputados insistem em lhes privar de instrumentos jurídicos?
A luta por garantia dos direitos humanos se faz a passos lentos, mas nem por isso deixamos de fazer a caminhada. A aprovação da PEC na Câmara dos Deputados é mais uma etapa que vencemos para a erradicação dessa prática vergonhosa no país. A essa altura, permitir que se rediscuta o conceito de trabalho escravo contemporâneo significa retornar ao ponto de partida e rejeitar a estrada que trilhamos às custas do suor de milhares trabalhadores, e isso não é uma opção.