O trabalho escravo contemporâneo não teve quarentena
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
Lys Sobral Cardoso – Procuradora do Trabalho, Coordenadora Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT e Mestre em Direito pela UCB
Maurício Krepsky Fagundes – Auditor-Fiscal do Trabalho, graduado em Física pela UnB, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)
Natália Suzuki – Coordenadora do programa Escravo, nem pensar! da ONG Repórter Brasil e doutoranda em Ciência Política da USP
Beatriz Soares Benedito – Mestra em Políticas Públicas pela UFABC e integrante do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)
Guilherme Nunes Pereira – Mestre em Políticas Públicas pela UFABC e pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGVces) e do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)
Jobana Moya – Imigrante boliviana humanista, ativista pela Não Violência Ativa e a Não Discriminação mediadora intercultural, membro-fundadora da Equipe de Base Warmis Convergência das Culturas
Em julho de 2020, trabalhadores maranhenses em situação análoga à de escravidão foram resgatados em Santa Catarina, após serem aliciados por meio de carro de som na cidade de Timbiras (MA). Vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração laboral, os trabalhadores receberam seus direitos trabalhistas devidos no Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – 30 de julho – e retornaram para a cidade de origem com passagens pagas pelo empregador, após notificação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) [1]. A realidade de aliciamento e exploração parece ser a repetição da história contada no filme Pureza, do diretor Renato Barbieri e protagonizado pela atriz Dira Paes, uma obra de ficção baseada em fatos reais, que remonta ao início das ações de combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil em meados da década de 1990.
Desde a primeira operação do GEFM, em 1995, até julho de 2020, foram resgatados mais de 55 mil trabalhadores e trabalhadoras nessa condição, os quais receberam cerca de R$ 108 milhões em verbas salariais e rescisórias, segundo o Radar do Trabalho Escravo da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). Embora o tema tenha ganhado relevância nas agendas governamentais e de organizações sociais Brasil afora, os trabalhadores maranhenses resgatados e outras centenas de casos semelhantes ocorridos neste ano demonstram que a história de mais de 20 anos atrás narrada pelo filme permanece atual e, infelizmente, ainda retrata a triste realidade das condições trabalho no país.
No primeiro semestre de 2020, quase todo marcado pelas medidas de isolamento social e restrição na circulação de pessoas causadas pela pandemia do Coronavírus, foram realizadas 45 ações de fiscalização e resgatados 231 trabalhadores em condições análogas à de escravidão em todo o país. Os dados, divulgados pela SIT, demonstram que as ações irregulares de trabalho escravo contemporâneo não tiveram quarentena, nem isolamento social, e continuaram infectando as atividades econômicas, sobretudo de pessoas em condição de vulnerabilidade, como migrantes (nacionais e internacionais), indígenas, trabalhadoras domésticas e desempregados.
Contudo, é enganoso crer que os atuais casos de trabalho escravo estão ocorrendo por causa da pandemia. Essa violação tem raízes na desigualdade social e na vulnerabilidade socioeconômica de milhares de indivíduos que são obrigados a crer que qualquer trabalho é melhor do que nenhum trabalho. A diferença é que a exploração se adequa ao atual contexto e é agravada pelos riscos de exposição ao vírus. Se há pouco tempo imigrantes eram traficados e explorados em oficinas de costuras para produzir roupas para grandes marcas, agora trabalham para atender a demanda por máscaras de tecido nos grandes centros urbanos, em razão das condições de vulnerabilidade agravadas em razão da situação documental no país – que os coloca à margem do sistema de proteção social enquanto migrantes ou refugiados . Em regiões de fronteira agrícola, por sua vez, 24 indígenas da etnia Guarani foram resgatados em uma colheita de mandioca vivendo sob condições degradantes, sem máscaras ou equipamento de proteção individual, aglomerados em um alojamento insalubre.
No atual contexto de pandemia, os órgãos de combate ao trabalho escravo tiveram que adequar suas dinâmicas e rotinas para: (I) manter as fiscalizações ; (II) evitar que as equipes levassem a doença para locais ainda não atingidos; e (III) garantir aos servidores públicos condições para realizar seus trabalhos de forma segura. A urgência da situação exigiu respostas muito rápidas, foi como se as instituições públicas precisassem “trocar a roda com o carro andando”, pois enquanto planejavam novos modos de atuação, empregadores infratores se adaptaram rapidamente ao novo cenário, o que pressionou os órgãos de fiscalização.
Dentre os principais desafios desses servidores, a logística para realização de uma operação de fiscalização e resgate pelo GEFM, que já é complexa, tornou-se ainda mais complicada. As dificuldades mais marcantes sentidas por esse grupo são: a instabilidade na malha aérea nacional, que afeta o deslocamento das equipes de fiscalização, principalmente para o interior do país; e as medidas de afastamento de pessoas que estão em grupo de risco da doença da COVID-19, especialmente os motoristas do GEFM, responsáveis pela condução das equipes aos locais de inspeção, o que resultou na redução do quadro de funcionários.
Os impactos das medidas de segurança também foram sentidos nos modos de organização das equipes nas cidades base para realização das operações. As equipes não podem mais dividir hospedagem em quartos duplos e precisaram contratar instalações individuais durante a estadia no local de operação, o que tornou os custos de trabalho algumas vezes incompatíveis com o valor da diária recebida pelos auditores, policiais e motoristas envolvidos na ação. Fora do contexto da pandemia, o compartilhamento de acomodações permitia às equipes escolherem hotéis ou pousadas com melhor localização e/ou maior segurança. Além desses fatores, o contato com trabalhadores e empregadores exigiu que as equipes adquirissem equipamentos de proteção individual de forma emergencial.
Após o retorno parcial das operações comandadas pela Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) da SIT, o Ministério Público do Trabalho – que havia suspendido sua participação presencial nas operações entre março e maio [2] – elaborou um documento de orientações para as ações de combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho análogo a escravidão durante a pandemia. Dentre as diretrizes, estão a prioridade de participação de membros residentes próximos aos locais da operação, a fim de reduzir ao máximo os deslocamentos, em especial o aéreo; a necessidade de testagem de contaminação pela COVID-19 da equipe antes da ação fiscal; o uso de álcool em gel para higienização pessoal e de superfícies; o uso de luvas e máscaras e seu descarte adequado, dentre outras medidas.
De todo modo, os efeitos da pandemia só poderão ser analisados de forma mais adequada ao final de 2020, quando será possível comparar os números deste ano com o de 2019, tendo em vista a quantidade de variáveis envolvidas no cenário de atuação da Inspeção do Trabalho. Entretanto, as perspectivas não são otimistas. Se é sabido que o trabalho escravo mantém uma dinâmica que se ancora na exploração de vulnerabilidades, principalmente a socioeconômica, é preciso antever as consequências decorrentes de um contexto de redução da renda e precarização das condições de trabalho de milhões de pessoas que serão fortemente afetadas pela crise econômica no país.
Pesquisas recentes demonstram que o Brasil possuía mais da metade de sua população ativa sem uma ocupação entre abril e maio de 2020 [3]. Ainda que lenta, em breve teremos uma retomada das atividades econômicas e dos postos de trabalho. Nesse contexto, é preciso estarmos atentos às condições dos empregos que serão ofertados à população e garantir que direitos trabalhistas não venham a ser ainda mais reduzidos, além de ser latente a necessidade de regularizar o status migratório de todos os imigrantes e refugiados no território.
Por fim, cabe ressaltar que a pandemia de COVID-19 agravou as condições estruturais da vulnerabilidade social de determinados grupos no país e demonstrou que as condições econômicas precárias se sobressaem às questões relativas ao combate do coronavírus. Esta doença impactou a rotina dos trabalhadores públicos que fiscalizam as atividades de trabalho escravo contemporâneo mais do que as dinâmicas de exploração em si. Desta forma, acredita-se que sairemos deste contexto de pandemia com as feridas, causadas pela desigualdade, expostas e com o horizonte de luta pela garantia dos direitos de trabalhadores ainda mais indefinido, pois apenas com políticas públicas estruturantes será possível construir novas realidades para os milhares de trabalhadores que hoje estão em condição análoga à escravidão e que ainda não encontramos.
[1] Nesse mesmo dia foi lançado o Sistema Ipê, plataforma online para recebimento de denúncias de trabalho escravo contemporâneo pela sociedade. O sistema foi desenvolvido em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pode ser acessado por meio do endereço eletrônico https://ipe.sit.trabalho.gov.br.
[2] O órgão continuou recebendo denúncias e prosseguindo nos inquéritos e ações em regime de teletrabalho desde o início da pandemia, porém em casos como os de trabalho escravo e tráfico de pessoas é necessária atuação in loco.
[3] O Boletim 14 da Rede de Políticas Públicas & Sociedade, baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD COVID19, aponta que pela primeira vez na série histórica, mais pessoas estavam sem trabalho do que trabalhando no Brasil entre abril e maio de 2020. Link: https://redepesquisasolidaria.org/boletins/boletim-14/situacao-dramatica-do-desemprego-esta-oculta-nos-indicadores-oficiais-sem-renda-emergencial-de-r-60000-a-pobreza-atingiria-30-da-populacao/