Mostre que somos todos migrantes e vença o preconceito
Por: Pedro Annunciato
Confira aqui a matéria originalmente publicada no site da Nova Escola.
“Até pouco tempo atrás, este local estava lacrado. Aqui o Ministério Público fechou uma confecção que explorava trabalho escravo de imigrantes.” Foi assim que a professora de História Rosely Marchetti Honório contou, para seus alunos do 6º ano, durante um passeio pelo bairro do Pari, em São Paulo, o que acontecia naquela esquina da Rua Gustavo Bresser com a Silva Teles, em uma movimentada região de comércio.
As crianças olhavam a fachada com espanto. Quem poderia imaginar que, a menos de 2 quilômetros da EMEF Infante Dom Henrique, onde estudam, havia pessoas trabalhando em condições que se assemelham à escravidão? “Pensava que isso era coisa de antigamente”, espantou-se Camila Morinigo da Silva, 12 anos.
Todos os alunos vivem nos arredores do Canindé, bairro vizinho à escola, que é referência no acolhimento de imigrantes. São, em maioria, filhos de migrantes de outros estados ou de países. Mariana Victoria, 12 anos, é de família boliviana, mas já nasceu aqui. “Nós sempre paramos na frente da televisão quando tem uma reportagem sobre trabalho escravo. Mas nunca tinha visto de perto”, conta. Agora, diante da oficina, era como se os olhos se abrissem.
Essa jornada de redescoberta começou porque Rosely andava preocupada. “Havia episódios de preconceito na escola, apesar de todo o esforço para evitar isso”, conta a docente. Ela começou a pensar em como poderia abordar a questão das migrações e suas consequências, e notou que muitas crianças não conheciam a história do lugar onde viviam. E mais: não tinham sequer clareza sobre a trajetória da própria família.
Viu que apostar na reconstituição dessa trajetória pessoal e local poderia ajudar na construção de um sentimento de empatia entre todos. Então, decidiu arregaçar as mangas e colocar em prática o projeto O Migrante Mora em Minha Casa.
De onde vem cada um
A primeira atividade era uma investigação sobre as próprias origens. Rosely pediu que os alunos fizessem um desenho com o tema “Uma Família”. Poderiam desenhar qualquer família, mas a maioria optou por desenhar a sua própria.
Yamelin Larico, 12 anos, não conseguiu terminar. Não que Rosely tenha dado pouco tempo – foram duas aulas inteiras só para isso. É que ela, “a desenhista da turma”, nas palavras do colega Jhonny Vasconcelos, quis desenhar o pai e a mãe minuciosamente. Camila adotou uma estratégia diferente: fez somente os rostos do máximo de gente que conseguiu. Jhonny se retratou ao lado do pai, com quem gosta de jogar futebol.
Cada aluno acabou transmitindo no desenho o tipo de relação que tem com a família. “Alguns se desenharam afastados dos pais no papel, o que correspondia ao isolamento que sentem. Outros fizeram familiares sem rosto, pois não entendiam quem eram essas pessoas”, analisa Rosely. “Essa proposta mostra a sensibilidade da professora. Muitas crianças no 6º ano sentem grande dificuldade de se expressar por escrito. Com o desenho, ela deixou as crianças mais à vontade para transmitir o que queriam”, elogia Antonia Terra, selecionadora do Prêmio Educador Nota 10.
Depois, por meio de entrevistas em casa, os estudantes tiveram que construir suas árvores genealógicas até os avós, registrando o lugar de origem de cada membro. Houve quem não conseguiu, mesmo perguntando, descobrir essas informações, e alguns campos ficaram em branco. Outros não sabiam contar o pouco que ouviram em casa. Não se sentiam à vontade. Mas a professora, pacientemente, fazia perguntas que ajudassem nesse trabalho de reconstrução: “Quem mora com você?”, “E seus avós, você conhece?”, “Me fale um pouco mais sobre seu desenho”.
Assim, foi possível levantar e tabular dados suficientes para concluir que quase todos, brasileiros ou não, eram filhos de migrantes. Numa roda de conversa sobre a diversidade na escola, os alunos concluíram que a migração é um direito dos que procuram uma vida melhor. Na aula expositiva sobre fluxos migratórios, compararam os processos ocorridos no início do século 19 e o fenômeno atual. Assistindo os filmes Kiriku, os Homens e as Mulheres e O Menino do Pijama Listrado, levantaram discussões sobre preconceito e racismo. E, finalmente, chegaram à questão do trabalho escravo contemporâneo.
O problema assola a região central de São Paulo, apinhada de oficinas de costura. Alguns donos de confecção se aproveitam da vulnerabilidade dos estrangeiros e os submetem a 10, 12 horas de expediente, com pagamentos praticamente nulos e locais de trabalho precários. Segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) disponíveis na plataforma Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil (bit.ly/observatorio-escravo), só no ano passado foram 38 resgates de trabalhadores nessas condições na cidade.
Foi aí que surgiu a ideia do passeio pelo bairro. Depois da visita, a professora aprofundou a discussão trazendo para a sala oito reportagens divulgadas pela imprensa sobre o tema. Além das matérias, Rosely destacou comentários agressivos ou preconceituosos de leitores a respeito da notícia. “Imaginei que, àquela altura, os alunos conseguiriam avaliar criticamente o nível de agressividade das falas. Mas não foi isso o que aconteceu.”
A saída pelo conhecimento
Era a vez de Rosely ficar surpresa. Mesmo depois de tudo que viram, a discussão sobre as notícias mostrou que muitos ainda tinham pouca sensibilidade em relação à questão. “Boa parte deles concordou com os comentários dos leitores. A discriminação estava mesmo arraigada”, conta a professora. Foi então que a ajuda de um colega se mostrou fundamental.
Cesar Sampaio, professor de informática, já acompanhava o projeto desde o início. Nesse ponto, ofereceu à Rosely vídeos, dados e textos produzidos pela ONG Repórter Brasil a respeito de trabalho escravo. “Tive contato com esse material em uma formação, e achei que ele seria útil para sensibilizar a turma”, lembra Cesar.
Abriu-se mais um ciclo de atividades, com a exibição de vídeos (você pode encontrar alguns deles em bit.ly/reporter-brasil) e debates sobre como o Brasil recebia seus imigrantes. “Aos poucos, as respostas foram mudando”, explica a docente. Por fim, Rosely, Cesar e a turma resolveram elaborar um panfleto educativo para alertar a comunidade do entorno sobre o tema.
“Rosely conseguiu estabelecer um diálogo entre a história local e pessoal, a formação do país e um problema atual que faz parte do cotidiano”, explica Antonia Terra. De fato, Yamelin, Marina, Camila, Jhonny e tantos outros tiveram a oportunidade de compreender melhor as próprias origens e como elas dialogam com a história do bairro, da cidade, do Brasil. Sabem que, de alguma forma, participam da humanidade – e são marcados pelos problemas que ela enfrenta.