Imigrantes: saiba por que a covid-19 é mais perigosa para essas populações
Muitas comunidades de imigrantes, que vivem em diferentes partes do Brasil, são vulneráveis socioeconomicamente. Isso as torna mais suscetíveis a diversas violações, especialmente em contextos de crise como o da pandemia. Entenda o porquê na versão atualizada do caderno Migração – O Brasil em movimento. A publicação do programa Escravo, nem pensar! aborda o contexto de algumas dessas populações no país, traz aspectos da legislação migratória brasileira e do acesso a direitos, como o trabalho decente
Por Natália Suzuki, coordenadora do programa Escravo, nem pensar!
Diariamente, a pandemia de covid-19 reafirma a certeza de que as populações vulneráveis são as que mais sofrem em termos sanitários e econômicos. Em pouco tempo, as condições de vida tornaram determinados grupos sociais mais suscetíveis à contaminação do coronavírus e ainda mais frágeis ao desmoronamento de sua precária renda. Muitos imigrantes que vivem no Brasil fazem parte desses grupos.
As organizações de sociedade civil apontam que as demandas e especificidades dessas populações são recorrentemente ignoradas pelo poder público, gerando uma espécie de seletividade perversa que decorre principalmente do desconhecimento acerca das suas necessidades, condenando-as renitentemente ao avesso da cidadania.
Cingapura, um dos países considerados modelos pelo seu método de contenção da covid-19, tem assistido a sua rigorosa política de barreira sanitária ruir pelo esquecimento de um grupo que vive às sombras: os imigrantes. Após um rígido sistema de controle, o poder público apenas se lembrou deles quando se tornaram foco de contaminação. Enquanto o país seguia em quarentena, os trabalhadores da construção, manutenção e transporte, a maioria imigrantes pobres, continuaram na ativa. O grande problema são os seus alojamentos que abrigam uma grande quantidade de pessoas em cômodos compartilhados. Se o evento parece uma anedota de um lapso da política pública, não nos esqueçamos que nós também temos os nossos imigrantes.
Em São Paulo, conhecemos comunidades numericamente expressivas e consolidadas há muitas décadas, como aquelas de latino-americanos, dentre os quais se destacam os bolivianos. Aqui, por anos a fio, elas têm se dedicado ao ramo da costura. Com os seus pontos de venda fechados por causa das determinações da quarentena, a demanda por seus serviços se reduziram a nada. Se num passado recente, muitos deles aceitavam trabalhar precarizados e desprovidos de qualquer direito trabalhista, hoje, recorrem a cestas básicas para dar conta das necessidades emergenciais diárias.
Não é apenas a situação econômica que empurra essas pessoas ao precipício do imprevisível e do invisível. Muitas famílias vivem juntas e dividem habitações pequenas e insalubres, que servem de moradia e trabalho, o que torna impossível seguir as recomendações básicas de profilaxia, como deixar os ambientes arejados e limpos e evitar aglomerações. Sob essas circunstâncias, muitos indivíduos já têm propensão a problemas respiratórios e, portanto, fazem parte do grupo de risco. Na última semana, tivemos notícia de que dois trabalhadores bolivianos de oficinas de costuras morreram provavelmente por causa da covid-19. Diante disso, é urgente informar essas comunidades com informações pertinentes a sua realidade para que possam se proteger de forma eficaz contra esse vírus altamente contagioso.
No atual contexto, os nossos antigos problemas sociais são exacerbados. As deficiências estruturais, como a falta de saneamento básico ou o déficit de moradia, terão repercussão catastrófica. Da mesma forma, os pequenos entraves cotidianos entre o poder público e a população se tornam obstáculos intransponíveis.
Todos os dias, imigrantes de dezenas de nacionalidades batem às portas do serviço social com demandas distintas: a inclusão em programas sociais, pedidos de cesta básica, denúncias de violência doméstica e de trabalho escravo. Para isso, as equipes de CRAS e CREAS fazem atendimento com o auxílio de um tradutor de computador, e isso não é uma novidade. “Vou atender um palestino que busca informações sobre o acesso ao auxílio emergencial. Em que língua terei que explicar?”, se questiona um assistente social.
Atualmente, a burocracia kafkaniana parece ganhar tentáculos incontroláveis. Neste mês, o governo federal anunciou o auxílio emergencial como uma das principais iniciativas para apoiar as pessoas em situação de vulnerabilidade durante o período de quarentena. O acesso ao benefício de R$ 600 mensais parecia descomplicado, já que tudo poderia ser feito pela internet. Um dos poucos requisitos era ter o CPF válido e regularizado. É bem verdade que milhões de brasileiros estão com dificuldade para acessar o documento, mas para os imigrantes não existe sequer informação para que sigam um procedimento padrão.
Se o Brasil é conhecido pela sua diversidade em tantos aspectos, isso também não é diferente em relação à sua população imigrante, pois ela não é homogênea. E sabemos que a heterogeneidade desafia desenhos de políticas públicas, especialmente quando não conhecemos ou não enxergamos os beneficiários.
Muitos setores do governo de diversos níveis da federação têm se ocupado dos venezuelanos recentemente interiorizados. Como organizar uma política de prevenção para um grupo que está espalhado em diversas cidades do país? Após a interiorização, houve acompanhamento dessas famílias e indivíduos? Destaco ainda os venezuelanos indígenas, como os de origem Warao. Quais recomendações e respostas o poder público é capaz de dar a esse grupo cujos referenciais socioculturais são completamente distintos? Como recomendar isolamento social a um grupo nômade, acostumado a viver sem habitação fixa e a se deslocar por entre fronteiras dos estados? Em muitas capitais do país, como Manaus e Belém, a mendicância é a sua fonte de renda. Pelas ruas esvaziadas, a quem recorrerão? Onde se instalarão? Nesta semana, um bebê warao morreu por causa de covid-19.
Via de regra, a administração pública busca alcançar o maior número de pessoas com poucos recursos e, assim, otimizar os efeitos de suas políticas. Mas, tenhamos em conta que se um dia conseguirmos, desde o início do processo, desenhar e implementar políticas sociais que considerem as minorias, aquelas mais frágeis dos grupos mais vulneráveis, tenhamos a certeza de que alcançaremos o maior número dentre os mais necessitados. Não deveriam ser sempre eles os beneficiários prioritários?
Na versão atualizada do caderno Migração – O Brasil em movimento (baixe aqui), o Escravo, nem pensar! aprofunda esse debate e apresenta outros efeitos perversos da falta de políticas públicas direcionadas aos imigrantes, como a sua submissão a situações de trabalho escravo, tráfico de pessoas e contrabando de migrantes. O material reafirma o entendimento da migração como um direito humano, de modo que seja garantido a essa população o acesso a serviços básicos, como saúde, assistência social e trabalho decente.