Imigrantes e refugiados também contam: acirramento da invisibilidade em tempos de pandemia
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
Alexandre Branco Pereira, doutorando em antropologia pela UFSCar, coordenador da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados e assessor da coordenação do CDHIC
Beatriz Soares Benedito, mestra em Políticas Públicas pela UFABC e integrante do Núcleo de Estudos da Burocracia
Camila Barrero Breitenvieser,mestre em Administração Pública e Governo pela FGV, coordenadora da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo
Giordano Magri, pesquisador do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV) e do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC)
João Chaves,defensor público federal
Natália Suzuki, cientista política e coordenadora do programa Escravo, nem pensar da ONG Repórter Brasil
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. O capítulo quinto da Constituição Federal de 1988 coloca brasileiros e estrangeiros lado a lado na garantia de direitos fundamentais no país. A nova Lei de Migração (Lei nº 13.445), em vigor desde 2017 e aprovada pelo Congresso Nacional em esforço suprapartidário e com grande apoio da sociedade civil, também reforça a ideia de igualdade jurídica entre nacionais e não nacionais. Porém, no momento em que a COVID-19 atinge de maneira muito desigual a população que vive no país, o que se percebe é o agravamento das questões sociais que a população de migrantes internacionais e refugiados estão submetidas.
Por alcançar no máximo 1% do total de habitantes do país, a população de migrantes internacionais e refugiados convive com os temas da invisibilidade e do preconceito estruturais. Essas populações existem, são uma categoria social evidente e compreendida, mas quase não são percebidos como beneficiários de políticas públicas.
Nesse sentido, as pessoas migrantes, e dentre elas especialmente as solicitantes de refúgio ou refugiadas, não atraem a atenção de formuladores e implementadores de políticas públicas, com raras exceções. A construção de políticas públicas voltadas à população migrante e refugiada é sempre desafiadora devido ao dinamismo dos fluxos e à heterogeneidade dessas populações. As trajetórias de vida, as culturas diversas e os contextos em que estão inseridos implicam no acesso a direitos de forma distinta e, muitas vezes, desigual. Por exemplo, as demandas de um migrante boliviano em São Paulo dedicado ao trabalho em uma oficina de costura podem ser muito diferentes das questões colocadas para um indígena warao, vindo da Venezuela e residente em Manaus.
Nesse sentido, nas últimas duas décadas a maioria dos serviços de apoio a migrantes privilegiou a qualificação de seu atendimento presencial e humanizado como forma de lidar com dificuldades linguísticas, de acesso aos meios de comunicação tradicionais ou de compreensão da burocracia brasileira. No entanto, no contexto da pandemia de COVID-19, as mudanças na dinâmica social e da circulação de informações, bem como no acesso às estruturas governamentais impactaram a vida de pessoas migrantes, especialmente nos grandes centros urbanos, e o atendimento desta população em serviços públicos.
A prática diária da interação entre burocratas que atuam na linha de frente das políticas públicas e migrantes internacionais e refugiados, enfrenta a falta conhecimento sobre documentos que essas pessoas possuem ou a incompreensão sobre o fato de que a elas é garantido o acesso a serviços básicos: é o caso, por exemplo, de instituições bancárias que nem sempre conhecem os documentos portados por migrantes e sua validade, exigindo invariavelmente além do necessário para sua identificação e atendimento de suas pretensões. A pessoa migrante, por mais tempo que esteja no país, sempre está sujeita ao questionamento de sua situação jurídica, o que não ocorre com brasileiros.
A indocumentação se torna, portanto, um entrave formal para acesso aos serviços públicos pela população migrante e refugiada. Contudo, há barreiras informais que impedem o acesso de migrantes e refugiados aos serviços públicos: a questão linguística; o medo de denúncia da situação documental irregular; e, o racismo, podem ser citados como exemplos.
No que diz respeito à língua, se verifica que há anos voluntários da sociedade civil organizada atuam como intérpretes em postos da Polícia Federal para permitir que o acesso a este serviço seja realizado. Hoje os serviços de atendimento da Polícia Federal a migrantes estão parcialmente suspensos, mas em algum momento a demanda terá de ser absorvida, sem uma burocracia que incorpore esta demanda da língua. Já no que se refere à educação, o ensino público avançou nos últimos anos em ações normativas para recebimento dessa população, porém ainda perece de estabelecer critérios pedagógicos que incluam estudantes migrantes e refugiados, ultrapassem a barreira da língua e valorizem a diversidade cultural. Na pandemia esse entrave se torna ainda mais presente, sobretudo no que diz respeito ao acesso à internet desses jovens e inclusão em atividades escolares.
Como tentativa de contornar a questão linguística, o Governo Federal disponibilizou cartilhas sobre a prevenção da doença em inglês, espanhol e francês. Porém, a coleta e disponibilização de dados de saúde sobre a incidência do .coronavírus em migrantes e refugiados é precária.
Outro fator que se intensifica neste momento são as manifestações de racismo e xenofobia contra migrantes internacionais e refugiados, que tiveram aumento expressivo em todo o mundo durante a pandemia – levando, inclusive, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a dizer que o que estava ocorrendo era um “tsunami de ódio e xenofobia”. Além do preconceito contra chineses, em particular, e asiáticos, em geral – frequentemente associados à propagação da doença -, também houve um crescimento exponencial de casos de racismo contra migrantes e refugiados negros.
O caso de João Manuel, migrante angolano de 47 anos assassinado em maio no bairro de Itaquera, zona leste de São Paulo, tornou-se emblemático do acirramento das expressões de racismo e xenofobia no país durante a pandemia. João Manuel foi morto com duas facadas após uma discussão sobre se migrantes teriam ou não direito ao recebimento do auxílio emergencial, e migrantes internacionais do bairro relatam que os ataques racistas e xenófobos já vinham ocorrendo desde antes da agressão – notícias dão conta de ataques verbais e espancamentos. O racismo e a xenofobia também têm consequências práticas na garantia de acesso à saúde para essa população e outros serviços básicos, aprofundando as vulnerabilidades a que estão submetidos e impactando de maneira mais forte migrantes mulheres, negros, indígenas e aqueles oriundos de países da margem do capitalismo global.
Diversas iniciativas têm sido levadas a cabo por organizações da sociedade civil de apoio que já trabalham com o tema há anos e viram suas ações cotidianas atravessadas pela pandemia do novo coronavírus. Em linhas gerais, estas organizações têm oferecido serviços relacionados às demandas jurídicas, regularização migratória, assistência social, assistência psicológica, cursos e encontros temáticos e de formação política, além de desenvolverem ações específicas – relacionadas às questões de gênero e acesso a direitos sociais, por exemplo – e territorializadas – que ampliam o alcance às populações residentes em bairros não centrais (onde se concentram a maior parte das organizações). Como no caso das instituições públicas, o atendimento realizado pelas organizações era realizado principalmente de forma presencial e teve que se adequar e passar a ser estruturado de forma remota lidando com os desafios e limitações impostas pelo atendimento não presencial.
Destaca-se também a ação de lideranças e associações de migrantes internacionais e refugiados. As ações abrangem a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e proteção individual, apoio para realização de cadastros de solicitação do auxílio emergencial e organização de campanhas de solidariedade. Além destas, há iniciativas que discutem a urgência da regularização migratória em tempos de pandemia, como a Campanha #RegularizaçãoJá apoiada por diversos coletivos e organizações ligadas ao tema. A campanha dialoga com a defesa pelos movimentos de migrantes, já de longa data, pela regularização migratória e que se torna mais urgente uma vez que a indocumentação é entendida como um agravante, como discutido anteriormente.
O acesso ao trabalho nesse contexto também ganha contornos preocupantes. Historicamente, migrantes vulneráveis são um dos grupos mais suscetíveis à exploração no mundo do trabalho. Muitas vezes, em situação documental irregular, não conseguem a formalização das relações trabalhistas por não disporem de documentação necessária ou pelas ameaças e coação do próprio empregador de denúncia a autoridades migratórias. O temor da deportação e a escassez econômica se impõem para que aceitem trabalhos precarizados, mal remunerados e rejeitados por quem pode escolher a sua ocupação. Em crises como esta, migrantes internacionais são os primeiros a perderem os empregos. Na retomada das atividades econômicas, têm dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, mesmo no informal. Diante disso, qual tipo de trabalho será ofertado aos migrantes após a pandemia? Eles conseguirão acessar padrões mínimos de dignidade em seus trabalhos? E o Estado brasileiro, será que estará preparado para lidar com essa precarização ainda maior que se antevê?
Todas as questões levantadas aqui demonstram a intensificação de problemas estruturais que já estão postos à inclusão de migrantes internacionais e refugiados nas políticas públicas.
Nesse sentido, o governo brasileiro deverá enfrentar em poucos meses o desafio de promover a regularização de migrantes internacionais e refugiados, atualmente indocumentados ou com documentos provisórios vencidos. Uma solução esperada é a simplificação dos trâmites, com menor exigência documental, atualização das normativas específicas e compreensão dos efeitos danosos da pandemia à circulação de pessoas e acesso a documentos dos países de origem como antes.
Além disso, outros desafios precisam ser enfrentados que, embora sejam desafios estruturais, demandam medidas urgentes que promovam o acesso a direitos de migrantes internacionais e refugiados neste momento de pandemia:
(i) intensificação do trabalho em rede, articulando órgãos públicos e organizações da sociedade civil, a fim de efetivamente alcançar populações migrantes invisibilizadas;
(ii) simplificação da documentação necessária para regularização migratória;
(iii) reforço da formação dos trabalhadores de serviços públicos essenciais quanto à documentação exigida à população migrante e refugiada;
(iv) ampliação das estruturas de fiscalização de casos de xenofobia e racismo e de situações de trabalho análogas à escravidão; e
(vi) valorização das ações das organizações da sociedade civil e de organizações de migrantes.
O momento de crise como a que estamos vivendo coloca às democracias do mundo o desafio premente de enfrentar as desigualdades locais e garantir a sobrevivência e condições dignas de vida às populações mais vulneráveis. Para isso, problemas estruturais das políticas e o efetivo alcance das ações governamentais precisam ser enfrentados e exigem da Administração Pública e da Academia um diagnóstico apurado e à disposição de eliminar as barreiras formais e informais de acesso a direitos a toda a população, incluindo-se a população migrante internacional e refugiada.