Fala de Bolsonaro gera dúvida: qual é a jornada do trabalhador do campo?

Clique aqui e confira a reportagem publicada originalmente no portal UOL.

Camilla Freitas
De Ecoa, em São Paulo
26/06/2020 04h00

“O homem do campo é um exemplo, realmente, de trabalhador brasileiro. Eles trabalham de segunda a domingo, por vezes, 24 horas por dia, e não reclamam de absolutamente nada. A não ser, às vezes, quando o Estado quer interferir no seu trabalho.” Essa declaração foi dada em evento de lançamento do Plano Safra 2020/2021, que aconteceu no último dia 17 de junho, pelo presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido). A fala acende alerta para especialistas em direito trabalhista e violações ao direito do trabalhador, em especial por que cabe ao próprio governo monitorar e coibir esse tipo de prática.

“Isso que ele está dizendo não é exemplo em lugar nenhum porque a lei não permite, ele está colocando como exemplo algo que é irregular, que é ilegal. Quem permite que seus trabalhadores façam coisas semelhantes a isso está infringindo a lei trabalhista”, comenta a jornalista e cientista social Natália Suzuki que coordena o projeto Escravo, nem pensar! da ONG Repórter Brasil. A lei citada por ela é a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Mesmo após a Reforma Trabalhista, que aconteceu em 2018, não foi permitido uma jornada de trabalho superior a 12 horas diárias com direito a descanso. “Essa fala reflete diretamente o perfil do trabalho escravo no Brasil. Porque o que acontece é a exploração”, comenta Lys Sobral Cardoso, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho.

“Ele estava achando que estava homenageando o trabalhador rural, mas a forma dele reverenciar o trabalhador é falar de sua submissão e exploração”. Natália Suzuki, jornalista e cientista social e coordenadora do programa Escravo, nem pensar!

Como o Brasil tem lidado com isso?

Em 1995, o Brasil reconheceu pela primeira vez a existência contemporânea do trabalho escravo no país, após mais de 20 anos de denúncia feitas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que chegou a denunciar o país na Organização dos Estados Americanos (OEA). Na OEA, houve um acordo em que o Brasil se comprometeu a fortalecer órgãos de proteção ao trabalhador e combate ao trabalho escravo. O que aconteceu.

O governo criou, então, as primeiras equipes de fiscalização conhecidas como Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que completou 25 anos em 15 de maio, quase um mês antes da fala do presidente. O grupo atua em território nacional e é organizado pela Detrae (Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo) do Ministério da Economia, mas conta com outros parceiros, entre eles o MPT e a Polícia Federal. O grupo é responsável por checar denúncias in loco, libertar trabalhadores e autuar os proprietários rurais.

“É preciso investir no combate ao trabalho escravo, mas ele não é o suficiente. Se não houver políticas de prevenção, de inclusão, de atendimento às vítimas para que elas não voltem a ser exploradas não adianta”. Lys Sobral Cardoso, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho

Assim que foi decretada a pandemia do novo coronavírus, o trabalho do Grupo Móvel foi interrompido. “Só que as equipes, tanto da Detrae como a gente do MPT, perceberam que têm uns casos muito graves. Então, agora, aos poucos, as operações estão voltando com as equipes locais tomando todas as precauções para evitar contaminação”, conta Sobral.

Além de descrever o que, segundo Lys Sobral, poderia ser classificado como trabalho análogo à de escravo, o presidente disse que o trabalhador posto em jornada exaustiva não reclama, a não ser “quando o Estado quer interferir”. Mas o que isso significa? Para Natália Suzuki, Jair Bolsonaro faz uma crítica ao trabalho dos órgãos do Estado destinados ao combate do trabalho escravo.

“Essa coisa de não reclamar absolutamente nada é um tipo de pensamento elitista e classista porque trabalho não é favor. Trabalho é uma troca, uma negociação econômica, um está vendendo a força de trabalho e o outro está pagando por ela. Se ambos têm autonomia, em tese, deveria ter equidade nessa relação”, explica Natália Suzuki.

Outra medida adotada contra o trabalho escravo foi, em 2003, o lançamento do primeiro Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Ele apresentou medidas de combate permanente integrando diferentes órgãos públicos e civis. O segundo plano nasceu cinco anos depois e ainda está em vigência. Ele incorporou experiências anteriores e melhorias nas políticas públicas. O órgão responsável por esses planos é a Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) que é formada por integrantes dos três poderes e organizações da sociedade civil.

A “Lista Suja” é outra ferramenta importante para o combate da prática do trabalho escravo. Criada por uma portaria em 2004, trata-se de uma base de dados com empresas que foram flagradas com esse tipo de trabalho e visa impedir que elas recebam financiamentos públicos além, é claro, de deixá-las expostas perante a sociedade. Então, antes de fazer uma compra, você pode dar uma olhada na “Lista Suja” e conferir se a empresa que você está apoiando foi ou não flagrada com trabalho análogo à escravidão.

Assim que o trabalhador é resgatado ele, automaticamente, é autorizado a receber o seguro desemprego, contudo, órgãos do governo ainda trabalham discutindo outras formas de dar assistência ao trabalhador depois do resgate. “Também se percebeu que é preciso incluí-los em políticas de educação, trabalho e renda. Aí existem algumas iniciativas no Brasil de atenção a essa questão. A primeira delas aconteceu no Mato Grosso e se chama Ação Integrada. O projeto atende os trabalhadores fazendo cursos de capacitação”, conta Sobral.

“É fundamental tratar de Reforma Agrária e agricultura familiar para fins de erradicação de trabalho escravo, trabalho infantil e tráfico de pessoas no país”. Lys Sobral Cardoso, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho

Reflexo do período de escravidão e visão sobre trabalho braçal

O café foi, por muito tempo, o principal produto da agricultura brasileira. No artigo “Café e escravidão” do livro “Dicionário da escravidão e liberdade”, o professor associado de História Contemporânea da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Ricardo Salles conta que, na década de 1880, o produto representava 61,7% das exportações nacionais. Sua mão de obra, como o título do artigo já introduz, era escrava.

Ainda hoje, o carro chefe da economia brasileira é a agricultura. O café não reina mais soberano nas lavouras, mas a mão de obra escrava ainda é muito presente no campo. Você pode estar se perguntando: Mas a escravidão não teve fim com a Lei Áurea em 1888? Teoricamente, sim. Mas a prática mostra que trabalhos não remunerados e com cerceamento de liberdade e maus tratos ainda acontecem no Brasil.

O termo “trabalho escravo” é utilizado hoje para se referir ao que o artigo 149 do Código Penal classifica como trabalho desempenhado por pessoa em condição análoga à de escravo. Segundo a legislação, esse tipo de trabalho se caracteriza por apresentar condições degradantes, quando há violação dos direitos fundamentais do trabalhador colocando em risco sua vida; jornada exaustiva, quando o trabalhador é submetido a trabalhos excessivos e/ou jornadas extremamente longas; trabalho forçado; e servidão por dívida.

Dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho mostram que de 1995 a 2019 foram resgatados no país 54.687 trabalhadores em situações que reuniam uma ou mais características das apresentadas acima. Os resgates foram feitos principalmente nos estados do Mato Grosso, Pará e Minas Gerais. O município com maior número de resgatado foi São Félix do Xingu (PA). O Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas mostra que, em 2018, esses trabalhadores vieram principalmente do Maranhão (22%), Bahia (10%) e Minas Gerais (9%) e 73% são trabalhadores da agropecuária, 42% pretos ou pardos, 31% analfabetos e a maior parte do sexo masculino.

“Esses trabalhadores são qualificados e especializados nas coisas que fazem, o problema é que a gente desvaloriza o trabalho rural e isso tem a ver com anos de escravidão e como a gente enxerga o trabalho braçal”.Natália Suzuki, jornalista e cientista social e coordenadora do programa Escravo, nem pensar!

A educação liberta

Imagine que você é um jornalista de uma grande cidade e vai até o interior do Pará fazer uma reportagem de denúncia sobre trabalho escravo. Você chega lá, vê situações de violência física e descumprimento das leis trabalhistas, escreve seu texto e vai embora. Foi esse movimento que gerou um incômodo nos repórteres da ONG Repórter Brasil, fundada em 2001, quando chegaram à conclusão de que não queriam apenas reportar o trabalho escravo, mas buscar resolver suas causas.

Desse sentimento, surgiu o Escravo, nem pensar!, programa educacional da ONG que nasceu em 2004 dedicando-se à prevenção do trabalho escravo no Brasil. A ideia do projeto é trabalhar o tema por meio da educação nas escolas. “A educação, além de um potencial transformador na vida de uma pessoa, tem um potencial multiplicador muito grande”, explica Natália Suzuki. O trabalho é feito por meio da formação de educadores para que eles, por sua vez, possam formar os alunos. Daí a ideia de “multiplicação” apresentada por Suzuki.

“As pessoas costumam achar que trabalho no campo é difícil, que trabalho no campo exige muito e que o trabalhador se machuca e ganha pouco mesmo. Essas coisas precisam ser desconstruídas e isso precisa começar na escola porque ela tem esse papel de leitura crítica e de reflexão sobre a realidade”.Natália Suzuki, jornalista e cientista social e coordenadora do programa Escravo, nem pensar!

Visto que o trabalho escravo se apresenta de maneira desconcentrada pelo Brasil, o processo de escolha das escolas que receberão o treinamento passa, portanto, por três critérios: o índice de trabalho escravo e aliciamento na cidade; o contexto político local, já que o trabalho precisa de parcerias com o poder público; e a existência de uma rede prévia de proteção ao trabalhador que possa auxiliar os moradores quando o projeto deixar a cidade.

Com a pandemia, as formações estão paradas. A coordenadora do projeto explica que essas atividades dependem muito da criação de laços de confiança com os formandos. “A gente precisa pensar muito essa questão da educação a distância no Brasil porque o que a gente tem não é satisfatório e para coisas relacionadas a esse tipo de trabalho formativo voltado para temas de direitos humanos não tem funcionado”, explica.

Até hoje, contudo, já foram feitas 188 ações de prevenção ao trabalho escravo concluídas pelo projeto em 465 municípios pelo Brasil. Ao todo, o Escravo, nem pensar! estima que 1,3 milhão de pessoas foram impactadas. “As pessoas entram na formação de um jeito e elas vão percebendo que as dinâmicas que elas vivem todos os dias são dinâmicas de exploração. Muitas vezes, a gente estava fazendo uma formação e uma professora começava a chorar”, lembra Suzuki.

Como denunciar

As denúncias de trabalho escravo podem ser feitas em vários órgãos, dentre eles o Disque 100. A Detrae, contudo, criou um outro canal que cai direto com os auditores, conforme aponta Suzuki, é um canal “eficiente e rápido” porque não passa pela triagem como acontece com o Disque 100. Você pode acessá-lo neste link!

O Ministério Público do Trabalho também recebe denúncias via prédios da procuradoria e via internet, nos sites das procuradorias regionais. O MPT também possui um aplicativo para denúncias, MPT Pardal, que você pode encontrar disponível para Android e IOS. Além do Ministério Público e do Disque 100, a Polícia Federal e órgãos da sociedade civil como a CPT também colhem denúncias contra trabalho escravo.

Conheça mais organizações que combatem o trabalho escravo no Brasil

CPT – Comissão Pastoral da Terra

Repórter Brasil

Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social

Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

MHuD – Movimento Humanos Direitos

CDVDH – Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia

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