Das vinícolas do RS ao período colonial: como os últimos casos de trabalho análogo à escravidão revelam problemas estruturais do Brasil?

Confira aqui a matéria original na página da web da Revista Digital Laboratório da Faculdade Cásper Líbero.

MAIS DE 1 MILHÃO DE PESSOAS VIVEM EM SITUAÇÃO DE ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA, SEGUNDO ESTIMATIVA DO GLOBAL SLAVERY INDEX 2023

A noite de 22 de fevereiro de 2023 ficou marcada pelo resgate pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) de 207 trabalhadores em situação análoga à escravidão, em Bento Gonçalves, na serra do Rio Grande do Sul 

Sob condições degradantes, os trabalhadores ficavam em um alojamento no Bairro Borgo, a cerca de 15 km dos vinhedos do município. Contratados por uma empresa que oferecia a mão de obra para vinícolas da região durante a colheita da uva, eram mantidos sob situações degradantes. Viviam sob ameaças e eram alvos de espancamentos e agressões com choques elétricos e spray de pimenta. 

As promessas eram de que receberiam salários superiores a R$ 3 mil, assim como acomodação e alimentação. Mas a realidade era outra. Os depoimentos dados ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) revelaram que os empregados eram obrigados a trabalhar das 5h às 20h, diariamente e sem pausas. As folgas eram apenas aos sábados e ainda seriam forçados a fraudar a folha de ponto, assinando que folgavam aos domingos.

Os trabalhadores foram contratados pela Fênix Serviços, que oferecia a mão de obra para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi, Salton e produtores rurais da região. A Fênix era responsável pelo alojamento e, segundo os depoimentos, representantes da empresa ofereciam comida estragada aos empregados. Eles ainda poderiam comprar produtos apenas em um mercadinho próximo ao alojamento, com valores superfaturados. A quantia gasta era descontada do salário, que no final do mês era inferior ao consumo. Aos que quisessem deixar o local, teriam de pagar a suposta “dívida”.

Esse caso, que ganhou visibilidade, é apenas mais um em meio às outras tantas ocorrências de situações de trabalho análogo à escravidão que ainda ocorrem no Brasil.  Segundo dados registrados entre o mês de janeiro e o dia 20 de março de 2023, por meio de operações do Ministério do Trabalho, o MTE resgatou  918 vítimas de trabalho análogo à escravidão. O número é recorde para um primeiro trimestre nos últimos 15 anos, e revela uma alta de 124% em relação ao mesmo período em 2022. 

“Esse aumento aparente se dá pelo fato de que em março tivemos um resgate com mais de 200 trabalhadores em um único caso. Isso não costuma ser frequente, mas calhou de acontecer”, explica Natália Suzuki, coordenadora do projeto “Escravo, nem pensar!” da ONG Repórter Brasil. Ela também ressalta que a crescente dos números não se traduz em índices maiores ou menores de fiscalização relativos ao final do governo Jair Bolsonaro ou ao início do Governo Lula, uma vez que “as instituições do poder público e da sociedade civil fizeram resistência para que as estruturas fossem mantidas”.

Atualmente, no Brasil, mais de 1 milhão de pessoas vivem em situação de “escravidão contemporânea”. A estimativa é do Global Slavery Index 2023, uma espécie de índice da escravidão mundial. O estudo foi divulgado em maio pela Walk Free, uma organização internacional de direitos humanos responsável por produzir dados sobre escravidão contemporânea. O Brasil também ficou com a décima primeira colocação nesse quesito, em um ranking formado com 160 países.

Somam-se a essa conjuntura outros dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que revelam que 83% das mais de 2,5 mil pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão em 2022 no Brasil eram autodeclaradas negras. Tal panorama revela marcas de uma sociedade autoritária (conceito explorado pela escritora Marilena Chaui) marcada por uma série de violências contra determinados grupos sociais. A população negra, por exemplo, convive permeada de desprivilégios e desigualdades desde antes do período da escravidão. 

Natália, entretanto, alerta para os cuidados que devem ser tomados ao desenvolver essa relação: “Uma das características do trabalho escravo contemporâneo é que a questão da raça e da etnia não são determinantes para quem contrata, mas obviamente que essa população é mais suscetível ao aliciamento”.

PERSPECTIVA HISTÓRICA DO RACISMO NO BRASIL 

A problemática do trabalho escravo no Brasil  é um fenômeno enraizado no país e herdado de um passado marcado por desigualdades, preconceitos, racismo, corrupção e patrimonialismo em grandes doses, algo que a professora e antropóloga Lilia Schwartz discorre no livro “Sobre o Autoritarismo Brasileiro”.

Engana-se quem pensa que não há resquícios de trabalho escravo no Brasil. Afinal, a abolição da escravidão tardia, sem amparo e suporte para essa população, contribuiu ainda mais para a repercussão desse processo.

No decorrer da década de 1870, o movimento abolicionista foi ganhando força em solo nacional e se potencializou mais ainda na década seguinte. Duas figuras centrais foram Luís Gama – de forma mais forte – e Joaquim Nabuco. 

Aliado à pressão interna, a Inglaterra, principal parceira econômica do Brasil na época, intimou a monarquia para que dessem fim à escravidão. Assim, em maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea e aboliu o trabalho escravo.

A lei garantiu a liberdade dos escravizados, mas não freou o surgimento de legislações discriminatórias e sequer possibilitou a inclusão dessas pessoas na sociedade de forma digna e íntegra. Com autoritarismo e discriminações, essa população foi empurrada para às margens e submetida a retornar à situação anterior de inferiorizados. 

Natália destaca a importância de pontuar que o trabalho escravo contemporâneo não é igual à escravidão dos períodos colonial e imperial, de modo que são dinâmicas distintas, sem que uma seja continuidade da outra. Entretanto, ressalta os legados deixados pela escravidão no passado, inclusive para a questão do trabalho escravo: “As intersecções estão obviamente na população que foi escravizada no passado. Uma população negra que mesmo com a abolição da escravidão não teve suas condições de vida e de trabalho melhoradas”. 

“No final do século XIX já havia uma enorme parcela da população que era vulnerável, e que perpassa ao longo de décadas e séculos nessa condição. E sabemos que, hoje, uma população que seja vulnerável socioeconomicamente, e em tantas outras dimensões, é sempre mais suscetível à situações de exploração, aliciamento e, no caso, de trabalho escravo”, completa.

A situação solidificou o colonialismo interno no país, que vai muito além do terreno econômico, adentrando também aspectos políticos, sociais e culturais, de forma que grupos marginalizados sirvam às elites que sempre estruturaram a sociedade, como defende Schwartz em seu livro.

Natália Suzuki aponta que “há casos de trabalhadores que migram dentro do próprio estado, de regiões mais pobres para as mais ricas”, e que “não há exatamente uma questão racial envolvida na questão do vínculo trabalhista”. Contudo, o que pode-se afirmar, conforme ela indica sobre o caso das vinícolas, é que discursos xenofóbicos e ações preconceituosas, que ecoam em regiões do Brasil, como a fala do ex-vereador gaúcho Sandro Fantinel em março deste ano, são fatores que criam uma perspectiva de hierarquização das classes sociais e constroem o autoritarismo velado no dia a dia. No caso, este tipo de discurso pode ser tomado como uma herança de um passado escravagista. 

CRONOLOGIA COM OS PRINCIPAIS CASOS

 As ocorrências de trabalho análogo à escravidão não são algo novo no Brasil, tendo em vista o histórico de casos. Separamos alguns dos principais que repercutiram recentemente na mídia, confira:  

Madalena Gardiano

O caso de Madalena Gardiano veio à tona em 2020. A empregada doméstica negra passou quase 40 anos trabalhando sem remuneração e em condições precárias na casa da família Milagres Rigueira, em Minas Gerais. Até hoje as quatro pessoas responsáveis acusadas de trabalho escravo, violência e roubo não foram julgadas pelo Ministério Público Federal e vivem em liberdade.

Atualmente, Gardiano é um dos principais nomes do combate ao trabalho escravo no Brasil. Seu caso é um dos exemplos que contrapõem teorias como os cinco mitos fundadores do Brasil (Dom da natureza de Deus, povo pacífico, democracia racial, país acolhedor e país do futuro), criticados pela escritora Marilena Chauí. Esses mitos também se contrapõem à existência de um país com estruturas escravocrata, racista e machista.

Fazenda em Minas Gerais

Outro caso relevante foi o maior resgate dos últimos 10 anos,  realizado em uma fazenda no interior de Minas Gerais, em 2022. A grande maioria dos 287 trabalhadores resgatados operavam na área de corte de cana, dentro de uma usina, onde foram encontradas mais de 26 infrações trabalhistas. Sem lugar para comer, as refeições diárias dos trabalhadores tinham de ser consumidas apoiadas em suas mãos ou pernas.  

O trabalho era realizado debaixo de sol intenso e o ambiente carecia de  equipamentos de proteção individual ou instalações sanitárias. Ao lado de onde era realizado o serviço de plantio e corte de cana, agrotóxicos ainda eram mantidos ao ar livre. 

Fazenda em Água Fria de Goiás

A maior fabricante de cigarros de palha do Brasil, Souza Paiol, mantinha 116 trabalhadores escravizados na colheita de palha para seus cigarros. Esse, que foi o maior resgate do ano de 2021, ocorreu em uma fazenda em Água Fria de Goiás (GO), a 140 quilômetros de Brasília. A jornada se iniciava às 05h e os trabalhadores só recebiam sua primeira refeição às 11h. Dentre as vítimas, haviam cinco adolescentes, sendo um de apenas 13 anos de idade. A investigação contra a empresa se iniciou no dia 13 de outubro e se encerrou no dia 20 de outubro do mesmo ano.

FISCALIZAÇÃO E COMBATE AOS TRABALHOS EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

Alguns órgãos e medidas foram criadas ao longo dos anos para a fiscalização e punição das empresas. Em 2003, a primeira versão do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE) foi publicada.O objetivo era de integrar e coordenar as ações de diferentes órgãos públicos e da sociedade, como os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público, entidades da sociedade civil brasileira e classe empresarial. Com base nas determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos, a intenção do governo era de construir uma política pública permanente de combate ao trabalho escravo. 

Cinco anos depois da criação do PNETE, surgiu, em 2008, o segundo plano de erradicação do trabalho escravo, dessa vez produzido pela Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo). Este é uma atualização do primeiro PNETE e se tornou uma referência nacional para o enfrentamento e erradicação do trabalho escravo no país. São 65 ações contidas no plano, divididas em três dimensões: a repressão ao crime, a prevenção ao problema e a assistência à vítima. Tais medidas colaboraram para a garantia de maior impacto sobre a destinação orçamentária, a tomada de decisões da implementação das políticas e a indicação de melhorias na conduta da política de combate ao trabalho escravo no Brasil.

Em 2020, a Conatrae publicou o documento chamado Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo, um guia dedicado a servidores de instituições do poder público e agentes de organizações da sociedade civil envolvidos no atendimento às vítimas do trabalho escravo e do tráfico de pessoas.  O material estabelece os papéis e responsabilidades de cada um dos atores envolvidos no combate, padronizando os procedimentos de atuação da denúncia ao pós-resgate e permitindo que as vítimas recebam um atendimento humanizado, sendo devidamente encaminhadas aos serviços e políticas pertinentes.

Uma das recomendações do Fluxo Nacional é a centralização de denúncias de trabalho escravo por meio do Sistema Ipê, uma plataforma online criada pela subsecretária de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério da Economia. Nela, é possível inserir, processar, classificar e acompanhar denúncias de trabalho escravo. A ferramenta ajuda no monitoramento de casos e na elaboração de políticas públicas sobre o tema, sendo ainda uma ferramenta de controle social relevante.

Além disso, o Repórter Brasil, organização não governamental brasileira independente, fundou em 2004 um programa educacional chamado “Escravo, Nem pensar!”, que tem o objetivo de qualificar o atendimento da rede socioassistencial em casos de exploração laboral para evitar que trabalhadores vítimas de trabalho escravo e que o tráfico de pessoas sejam explorados novamente. Trata-se de um programa de educação, com abordagem preventiva na ótica do trabalho escravo.

“Trabalhamos em termos de transformação, no sentido de a sociedade perceber que práticas muito arraigadas e naturalizadas na verdade são violações de direitos humanos muito sérias”, explica a coordenadora do projeto, Natália Suzuki.

Em outra ação, a Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério da Cidadania, em parceria com o Repórter Brasil e outras entidades, lançou o Sistema Único de Assistência Social, no combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, que segue as especificações do SUAS – uma cartilha dedicada a erradicação de violências, incluindo a de trabalho.

VEJA MAIS EM ESQUINAS

Desafios do combate ao trabalho escravo na contemporaneidade

Brasil Autoritário: vinícolas no RS e o trabalho análogo à escravidão

Dois séculos após a Colônia, escravidão ainda reverbera no Brasil

AFINAL, O QUE É O TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO?

Conforme o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo à condição de escravo é caracterizado pela “submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

Reduzir alguma pessoa a tal condição está previsto no artigo 149, do Código Penal, que também prevê as mesmas penas para quem, com o fim de reter o trabalhador, pratique algumas das seguintes ações:

– Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador;

– Manter vigilância ostensiva no local de trabalho;

– Reter documentos ou objetos pessoais do trabalhador.

Segundo um documento levantado pela SIT (Subsecretaria de Inspeção do Trabalho) e publicado no site do gov.br, 284 empresas estão registradas no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão. 

Também é possível levantar estatísticas sobre o trabalho análogo à escravidão no Portal de Inspeção do Trabalho. Até o dia 14 de junho de 2023, o Radar SIT – ferramenta que arquiva os dados das fiscalizações –, computava 1.443 trabalhadores em situações análogas a escravidão.

Editado por Mariana Ribeiro