Brasil resgatou mais de 8 pessoas vítimas de trabalho escravo por dia em 2023, um recorde em 12 anos

Confira aqui a matéria original na página da web da Revista Fórum.

Dados revelam uma reorientação das políticas públicas para reconstruir o arcabouço de proteção à classe trabalhadora, enfraquecido nos últimos anos

O ano de 2023 já registrou um recorde no número de trabalhadores resgatados de situações análogas à escravidão. Apenas no primeiro semestre deste ano (dados acumulados até 14 junho), 1.443 trabalhadores submetidos a jornadas exaustivas, má alimentação, ameaças físicas e psicológicas e atrasos no pagamento dos salários foram encontrados e, conforme o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), todos eles foram resgatados. Esse número já é o maior para um primeiro semestre em 12 anos, superado apenas em comparação ao mesmo período de 2011, quando 1.465 trabalhadores foram resgatados.

Isso significa que, a cada dia, mais de oito trabalhadores foram efetivamente retirados da situação análoga à escravidão em operações de resgate, somente neste ano. Considerando a média diária, esse número pode ter chegado a mais de 1.500 até o final do mês de junho, o que alcançaria um novo recorde de 14 anos (o primeiro semestre de 2009 registrou 1.908 resgates).

De acordo com os dados mais recentes do Radar SIT, disponíveis no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, o número de trabalhadores encontrados nessas condições desde o ano de 1995, quando foi iniciado o registro, chega a 61.711.

Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo

Em 1995, o Brasil assumiu a existência do trabalho análogo à escravidão em território nacional, e um sistema nacional de combate ao trabalho escravo foi criado. Mas foi em 2003, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que foi publicado o 1° Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, expressando a intenção do governo de construir uma política pública permanente de combate à escravização de trabalhadores. 

Em 2008, o governo federal lançou o 2° Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e, naquele mesmo ano, todos os 5.045 trabalhadores encontrados nessas condições foram resgatados. Esse segundo plano, produzido pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, atualizou o primeiro, de 2003, com 65 novas ações para melhorar a fiscalização.

Atualmente, o plano em vigor ainda é o de 2008, mas, após os casos emblemáticos de trabalho escravo no Rio Grande do Sul, em fevereiro deste ano, o governo afirmou, por meio do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, que vai rever o documento e, se houver necessidade, criar um terceiro plano. Essa afirmação foi feita no último mês de março durante o seminário Direitos Humanos e Empresas, na Câmara dos Deputados.

Trabalho escravo e o agronegócio

A atividade econômica que concentra maior número de mão de obra escravizada é a agropecuária, seguida pela construção civil e carvoaria. Segundo pesquisa realizada pelo Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, no período entre 2008 e 2022, do total de trabalhadores resgatados, 46% trabalhavam no setor agropecuário, em atividades como a criação de bovinos, colheita de cana-de-açúcar e cultivo de café.

Na mesma pesquisa, os dados revelam que os locais de resgate têm crescimento econômico intenso, com oferta de trabalho com menores salários e pouca ou nenhuma qualificação profissional. 

O que os dados dizem sobre políticas públicas

O Radar SIT, ferramenta da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE que fornece informações e estatísticas sobre trabalho análogo à escravidão no Brasil, evidencia que, em 2017, houve uma redução drástica no número de trabalhadores encontrados e resgatados (648 e 640, respectivamente). 

Naquele ano, houve uma série de mudanças nas leis relacionadas ao trabalho, sobretudo a terceirização (Lei 13.429/2017) e a chamada reforma trabalhista (Lei 13.467/17), ambas aprovadas durante o governo Michel Temer, que chegou a tentar alterar, por meio de portaria do MTE, o conceito de trabalho escravo, exigindo para sua caracterização, entre outras coisas, a restrição do direito de ir e vir. A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, considerou que o texto violava a Constituição e acordos internacionais de que o Brasil faz parte e suspendeu o ato normativo.

Natália Suzuki, coordenadora do programa “Escravo, nem pensar!”, de prevenção ao trabalho análogo à escravidão, afirma que desde o final de 2015 e em 2016 já não havia uma priorização do combate ao trabalho escravo por parte do Estado. “Ao final de 2016 e começo de 2017, há também uma restrição no orçamento para condução de inspeções de trabalho. Veio de um cenário político desfavorável desde 2014 e que culmina em 2017″, declarou ela em entrevista à Fórum.

Como são realizadas as operações

As operações de resgate são realizadas conjuntamente pelo Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Defensoria Pública da União e outras entidades. 

Após receberem a denúncia, os agentes dos diversos órgãos vão ao local confirmar a existência de trabalho análogo à escravidão, coletar provas e prestar os atendimentos iniciais às vítimas, emitindo documentos necessários, providenciando o atendimento emergencial de saúde e direcionando os trabalhadores a abrigos.

Segundo a Polícia Federal, “além do resgate, a ação conjunta tem como objetivo a verificação do cumprimento das regras de proteção ao trabalho, a coleta de provas para garantir a responsabilização criminal daqueles que lucram com a exploração e a reparação dos danos individuais e coletivos”.

Como denunciar

A legislação brasileira, no art. 149 do Código Penal, prevê que a redução de um ser humano à condição análoga à de escravo é caracterizada “pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

É possível denunciar casos ou suspeitas de trabalho escravo pelo site do Ministério Público do Trabalho ou ligar para o Atendimento ao Cidadão do seu município. O portal do governo federal também recebe denúncias, de forma remota e sigilosa, no Sistema Ipê. Há ainda o Disque 100, canal de denúncias de violação dos direitos humanos, e o Disque 158, da Ouvidoria do Ministério do Trabalho e Emprego.