Trabalho escravo na FUVEST 2019
Natália Suzuki, coordenadora do programa Escravo, nem pensar!, comenta a questão da Fuvest 2019, que abordou o tema do trabalho escravo na segunda fase de provas, em questão dissertativa de língua portuguesa
A Fuvest 2019 trouxe o tema do trabalho escravo em uma de suas questões da segunda fase. Essa abordagem segue a linha de tratar assuntos da atualidade, que estiveram na agenda pública por terem sido discutidos por diversos setores da sociedade e, portanto, foram pautas constantemente presentes na mídia. O objetivo é, claro, dar conta de testar os conteúdos obrigatórios apreendidos até o Ensino Médio, mas também avaliar o nível de conhecimento geral do candidato.
Certamente, em termos técnicos não era uma pergunta simples de ser respondida, porque exigia uma série de pressupostos por parte daquele/a que a responderia.
A despeito de a questão ter sido incluída na prova de Língua Portuguesa, o domínio de conteúdos e referenciais de outras disciplinas, como História, Sociologia e Geografia, colabora para a composição de respostas mais completas e elaboradas. O trabalho escravo é um tema que consideramos “gerador”; isso significa que ele suscita a interdisciplinaridade por meio das conexões transversais de conteúdos e tem potencial pedagógico para suscitar debates e provocar reflexões críticas por parte de alunos e também de educadores.
No entanto, acertar o cerne da questão dependia necessariamente de a pessoa ter acompanhado e estar atualizada acerca do debate que tem sido travado em torno do trabalho escravo nos últimos anos. O conhecimento sobre a existência de uma política pública de combate ao trabalho escravo com foco na repressão e a noção dos atores que são os seus protagonistas teria sido importante. Dessa forma, o aluno teria condições de saber que desde 1995, no Brasil, trabalhadores são resgatados em inspeções a propriedades produtivas em zonas rurais e urbanas, realizadas por órgãos do poder público, como o Ministério Público do Trabalho, autor do cartaz publicitário da prova.
Ademais, saberia que hoje o trabalho escravo é um fenômeno distinto da escravidão que vigorou entre os períodos colonial e imperial do Brasil. Contudo, é relevante destacar que o título de propriedade de uma pessoa sobre a outra é proibido desde a abolição da escravidão, que se deu oficialmente com a assinatura da Lei Áurea. A rigor, portanto, a instituição “escravidão” não existe mais desde então, ainda que condições análogas a essa ainda sejam impingidas a milhares de trabalhadores e trabalhadoras em todos os estados do país. Hoje, o trabalho escravo não prende mais as suas vítimas a correntes, as quais não são mais açoitadas no pelourinho ou no calabouço. Mas, ainda assim, elas têm a sua liberdade retirada e a sua dignidade acometida, porque vivem sob condições degradantes, que se referem a um conjunto de práticas ilegais como alojamentos precários, ausência de alimentação adequada, falta de água potável e saneamento básico. São tratadas como mercadorias, pois são vistas como mão de obra descartável para trabalhos árduos, mal pagos e que poucos se dispõem a desempenhar, mas a rigor não são vendidas e compradas como no passado. O fato de os trabalhadores permanecerem presos ao local de trabalho se deve a um mecanismo fraudulento em que os empregadores descontam de seus baixos salários custos com alimentação, aluguel e equipamentos de trabalho. O custeio desses itens é responsabilidade do patrão, mas acabam cobrados de forma arbitrária, com altos preços, no final de cada mês. Por isso, frequentemente os trabalhadores acabam em situação de débito, sem ter o que receber. A dívida acaba tendo que ser paga com a própria força de trabalho.
Ainda que no âmbito jurídico-criminal o termo “trabalho a condições análogas à de escravidão” seja o mais preciso para definir a prática criminosa da qual falamos aqui, popularmente o fenômeno ganha também outros nomes: trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, formas contemporâneas de escravidão.
Seria útil ao aluno saber que o texto do artigo 149 Código Penal brasileiro, cujo principal trecho se refere ao excerto II da pergunta da Fuvest, traz a definição técnica e conceitual de trabalho escravo. Em 2003, o legislador que alterou o texto considerou justamente que o crime de escravidão não poderia existir, porque a prática já não era mais permitida desde 1888. O texto jurídico, então, destaca que o crime se refere ao fato de empregadores submeterem seus trabalhadores a situações semelhantes (análogas) à de escravos do passado.
Esse conteúdo é matéria do mundo jurídico que raramente é tratado nos Ensinos Fundamentais e Médios. Contudo, nos últimos cinco anos um ferrenho debate em torno do conceito do trabalho escravo tem sido travado por setores relevantes da sociedade, e isso tem sido destacado pela mídia. A bancada ruralista e donos de propriedades produtivas, por exemplo, são contrários ao conceito de trabalho escravo. Para eles, a definição sobre o que é trabalho escravo não é precisa, também discordam de que condições degradantes e jornadas exaustivas sejam caracterizadoras de situação de trabalho escravo, a qual se restringiria somente ao cerceamento de liberdade, remetendo assim ao entendimento sobre a escravidão do passado. Por causa disso, há inúmeros projetos de lei no Congresso que buscam a alteração da definição de trabalho escravo. Há também tentativas mais diretas de minar as inspeções que resgatam trabalhadores. Por outro lado, os atores comprometidos com o combate ao trabalho escravo, como os procuradores do trabalho do Ministério Público do Trabalho e os auditores fiscais do trabalho do Ministério do Trabalho, além de organizações da sociedade civil, defendem a manutenção do atual conceito e, principalmente, a proteção do texto do artigo 149, pois ele é utilizado como instrumento jurídico e técnico para a realização das inspeções e da elaboração dos processos judiciais contra aqueles que infringiram a lei.
Veja alguns exemplos das notícias que veicularam na mídia dos últimos anos:
Governo paralisa combate a trabalho escravo e infantil por falta de verba
MPT critica portaria que modifica conceito de trabalho escravo
Governo volta atrás e muda portaria que dificultava libertação de escravos
“Ministro” de Bolsonaro repete erro de Temer ao tratar de trabalho escravo
De acordo com essa contextualização, responderia as questões da seguinte forma: (clique aqui para visualizar as questões na íntegra)
- O trecho II é parte do artigo 149 do Código Penal, que define como criminosa a prática de submeter alguém a condição análoga à de escravo. Considerando que o instituto “escravidão” é proibido desde 1888, quando foi assinada a Lei Áurea, não é possível fazer com que uma pessoa se torne escrava, porque não há mais o reconhecimento da propriedade de um indivíduo sobre o outro, como ocorria durante os períodos colonial e imperial no Brasil. O que hoje é uma realidade é o fato de milhares de trabalhadores serem explorados por seus empregadores em diversas atividades econômicas, e é sobre isso que a publicidade do Ministério Público do Trabalho (MPT) trata. Sob condições desumanas de exploração, eles são obrigados a viver em situações degradantes, que incluem alojamento precário, péssima alimentação e falta de assistência médica. Eles são obrigados a se manter trabalhando onde são explorados, pois frequentemente estão presos a uma dívida inventada pelo patrão, que desconta de seus baixos salários custos com deslocamento, aluguel e alimentação. Assim, são impedidos de deixar o local onde vivem e trabalham. Dessa forma, o que prende o trabalhador ao trabalho não são correntes, mas um mecanismo fraudulento criado pelo empregador. Para o MPT, uma das entidades responsáveis pelo combate ao trabalho escravo no Brasil, o trabalho escravo existe, ele não é mera analogia a uma prática do passado, porque os trabalhadores escravos ainda hoje têm sua liberdade restringida e a sua dignidade acometida, como na escravidão.
- O fundo escuro traz o entendimento de que o trabalho escravo não é percebido, ele é ainda invisível por grande parte da sociedade que a desconhece ou não acredita que ele existe. Por ser uma prática criminosa, ela não é exposta de forma explícita, portanto ocorre na marginalidade e escondida, fora das vistas do público. Esse crime deve ser combatido, e isso é lembrado no dia 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, informação que consta no cartaz. O negro da imagem remete também ao caráter soturno da prática. Uma segunda remissão possível é o fato de a escravidão do passado ter sido determinada pelo critério racial, ou seja, os negros eram as vítimas daquela exploração. Hoje, conforme pode sugerir a imagem do cartaz, em que estão presentes mãos de uma pessoa branca, que contrastam com o fundo escuro as mãos, simbolizam que os escravizados não necessariamente são negros.
Alguns cursinhos deixaram implícito em suas respostas que o cartaz do MPT seria uma forma de criticar o Código Penal. De acordo com esse entendimento, para a entidade o texto jurídico atenuaria uma prática criminosa da escravidão, que existe na realidade. Há de se considerar que esse entendimento é possível, mas somente no caso de a pessoa não ter o conhecimento do contexto que expus até então. Mas, essa interpretação não é coerente com a realidade, uma vez que o MPT se vale do artigo 149 para realizar as ações de combate ao trabalho escravo e, justamente, por isso tem defendido a manutenção do texto jurídico em momentos de disputas acirradas.
A título de curiosidade, a última vez que a Fuvest incluíra a temática do trabalho escravo em sua prova foi há uma década. Na época, os especialistas indicavam que a instituição se equivocara na resposta da questão de múltipla escolha. Veja aqui.