Trabalho análogo à escravidão inclui cada vez mais imigrantes
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Maioria dos resgatados é homem, jovem, com pouca instrução e atua na área de confecção; bolivianos e paraguaios lideram entre as nacionalidades
O perfil do trabalho análogo à escravidão está mudando no Brasil. Formado majoritariamente por migrantes internos, o grupo de trabalhadores resgatados vem incluindo cada vez mais imigrantes. Dossiê Trabalho Escravo e Migração Internacional mostra que o total desses trabalhadores em condições análogas à escravidão resgatados quase dobrou no último ano, indo de 39 em 2022 para 76 em 2023. A alta reflete o aumento das fiscalizações, mas traz um número subestimado, afirmam especialistas.
O dossiê, do programa educacional Escravo, Nem Pensar!, da ONG Repórter Brasil, está previsto para ser lançado em 24 de outubro e foi antecipado ao Valor. Ele sistematiza pela primeira vez estatísticas de imigrantes trabalhando em situação análoga à escravidão, ao cruzar informações de três bases de dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE): o Radar SIT, painel com informações sobre resgates de trabalho escravo, o banco de dados das guias de Seguro-Desemprego Trabalhador Resgatado, e os relatórios das operações de fiscalização, produzidos por auditores
fiscais do trabalho.
O “trabalho análogo ao de escravo” é crime previsto no Código Penal e pode envolver trabalho forçado sem possibilidade de deixar o local por dívidas ou ameaças, jornada exaustiva além das horas extras e que coloca em risco a integridade física do trabalhador, ou ocorrer em condições degradantes, com alojamento precário, má alimentação, maus tratos, falta de assistência médica ou de saneamento básico e água potável.
Os dados do dossiê mostram que o pico de resgate de imigrantes escravizados ocorreu em 2013 e 2014, com 259 e 114 resgatados, respectivamente. Em 2023, houve uma retomada significativa da libertação desses trabalhadores, na comparação com os anos anteriores.
“Os números de 2013 e 2014 são explicados pelo que ocorreu em São Paulo. É reflexo do foco da auditoria fiscal do trabalho na indústria da moda. Tivemos o caso da Zara, entre 2011 e 2012, que chamou muita atenção para as cadeias da moda dessas grandes marcas, com produção terceirizada. O que houve, então, foi um boom de fiscalização, e não necessariamente surgiram mais trabalhadores nessas condições”, diz Natália Suzuki, gerente de educação e políticas públicas da Repórter Brasil e responsável pelo relatório.
“Nesse período ocorre também a chegada de muitos haitianos aqui. E, além do olhar para as oficinas de costura, passa a haver aquele voltado para a construção civil. Isso teve como consequência mais resgates em zonas urbanas do que em rurais.”
Em 2013 foram resgatados 1.976 trabalhadores escravos, sendo 260 imigrantes. Em 2014, foram 1.455 no total, dos quais 114 eram de fora do Brasil.
O total de resgatados foi diminuindo nos anos seguintes para 842 em 2015 e 603 em 2017. Destes, eram imigrantes 55 e 33, respectivamente.
Em 2020, primeiro ano da pandemia, o total de resgatados chega a 870, dos quais 23 eram imigrantes. Esse número sobe para 2.359 em 2022 e 3.071 em 2023, sendo imigrantes 39 e 76 encontrados nesses dois anos.
No início da década de 2010, a maioria dos imigrantes resgatados era boliviana e paraguaia. Em 2023 e 20214 houve também haitianos e peruanos. Venezuelanos surgiram pela primeira vez entre os resgatados em 2017. Nos dois últimos anos foram a segunda maior nacionalidade com maior número de trabalhadores escravos resgatados, depois dos paraguaios.
“A alta de 2023 tem muitas causas. Há um pós-pandemia e também uma capilarização da política pública. Antes, quase tudo era centralizado em Brasília. A partir da década de 2010 e agora na década de 2020, vemos autonomização das fiscalizações. Isso faz com que haja maior diversificação [de casos em diferentes] atividades econômicas”, diz Suzuki.
A capilarização é importante, afirma, para se obter maior agilidade. Como no caso de domésticas filipinas em São Paulo, por exemplo, em que autoridades locais receberam denúncia e cruzaram com informações sobre uma ação contra a empresa que traficava essas imigrantes, conta.
“Até isso chegar [às autoridades] em Brasília, poderia demorar muito ou talvez nunca acontecer”, afirma. “Com o tempo, foi-se aprendendo a fazer adequações a questões locais e a ter o olhar do trabalho escravo para outras atividades [além das tipicamente de zonas rurais].”
A criação do dossiê, afirma Suzuki, foi motivada por dois objetivos. O primeiro é disponibilizar informações sobre vítimas de trabalho escravo imigrantes. O segundo é oferecer insumos para a elaboração de políticas públicas voltada para esse grupo específico.
Nesse sentido, o documento buscou entender o perfil desses imigrantes resgatados e em que condições migram.
“Os trabalhadores migrantes internacionais resgatados no Brasil são nascidos sobretudo em países latino-americanos cujos índices socioeconômicos são baixos. A desigualdade social, a falta de oportunidades de trabalho no país de origem e a crise política e socioeconômica costumam ser algumas das principais motivações migratórias”, diz o documento. “Não é possível definirmos um perfil geral e único de trabalhadores internacionais escravizados. Eles vêm de diferentes países, são empregados e explorados em inúmeras atividades e localidades”, afirma.
Eles sofrem pressão para que não falem nada ou não tentem fugir, sob ameaça de que não têm documentos” — Paolo Parise
Dos 902 trabalhadores imigrantes resgatados entre 2010 e 2023, 78% eram do gênero masculino, e 22%, do feminino. Mais de 85% tinham entre 18 e 39 anos de idade, 43% não haviam terminado o 5º ano do ensino fundamental e 19% haviam completado o ensino médio.
Os Estados onde mais ocorreram resgates desses imigrantes no período foram São Paulo, respondendo por 56% do total, seguido por Minas Gerais (14%) e Mato Grosso do Sul (10%).
As principais atividades em que atuavam esses trabalhadores são confecção (52%), construção civil (17%), lavouras (7%) e fabricação ilegal de cigarros (7%).
A falta de uma política clara para assegurar que imigrantes tenham acesso a emprego digno é uma das principais razões por trás da alta do trabalho escravo envolvendo imigrantes, afirma Tadeu Oliveira, coordenador de estatística do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), da Universidade de Brasília (UnB).
“O Brasil acolhe, recebe, regulariza, mas não possui política de inserção no mercado de trabalho ou acesso a moradia digna, saúde, educação, benefícios sociais”, diz.
“Os fluxos para cá são cada vez mais volumosos. E a maior parte de quem chega é do sexo masculino e em idade para trabalhar. São pessoas que estão expostas e vulneráveis ao trabalho análogo à escravidão.”
O padre Paolo Parise, coordenador da Missão Paz, que acolhe imigrantes e refugiados em São Paulo, observa que quando esse público é vítima de trabalho escravo, enfrenta ainda mais dificuldades para sair dessa situação do que os brasileiros.
“Eles sofrem pressão para que não falem nada ou não tentem fugir, sob ameaça de que estão indocumentados e que, portanto, têm chances de irem preso se denunciarem às autoridades. Esse é um agravante em relação aos brasileiros aqui.”
Parise acredita que, além das fiscalizações, seria importante trabalhar para prevenir esses casos. “É importante também responsabilizar quem está no topo da cadeia produtiva. Muitas vezes se culpabiliza o dono da oficina de costura, por exemplo, mas não a marca. Além disso, depois do resgate seria fundamental reinserir essas vítimas no mercado para que consigam trabalho formal e digno.”
O dossiê do Escravo, Nem Pensar! afirma que “a percepção sobre o direito dos migrantes internacionais é tardia no Brasil”. E lembra que a irregularidade migratória acaba por atrair outras irregularidades, como imigrantes indocumentados e sem acesso à carteira de trabalho, o que muitas vezes os leva a aceitar postos informais.
“Quem está vulnerável está suscetível a ser explorado. Mas, no caso dos imigrantes, a situação irregular os vulnerabiliza ainda mais”, diz Suzuki. “Há ainda a barreira cultural e linguística. Esse trabalhador tem pouca socialização e demonstra dificuldade de se expressar. A maioria não sabe se pode ou não ter carteira de trabalho, o que seria uma jornada legal, não tem rede de apoio que possa auxiliar.”
Suzuki alerta que o total de imigrantes resgatados é um número subestimado e que possivelmente há muitos outros em condições de trabalho escravo que ainda não foram localizados.
“A fiscalização sempre será aquém do tamanho do problema – em relação a brasileiros e a imigrantes” diz. “Imagine oficinas de costura que estão na ilegalidade funcionando em uma portinha sem quase ninguém saber.”