EXPLORAÇÃO 2.0: Por que a escravidão contemporânea resiste no mundo todo — e como ela pode se agravar ainda mais
Crise econômica deve agravar desemprego e levar mais trabalhadores a situações análogas à escravidão
Publicado originalmente no Tab UOL – 22/7/2020
Arte: Deborah Faleiros – Edição: Olívia Fraga – Reportagem: Debora Miranda e Letícia Naísa
Mulheres oferecem faxina em troca de um prato de comida. Imigrantes costuram máscaras a R$ 0,05 por peça, em São Paulo. Crianças aliciadas vendem bala no farol.
A indignação é seletiva quando o assunto é trabalho escravo —o impulso de trocar de celular e comprar um novo jeans é tamanho que, às vezes, não há tempo de desconfiar do preço tão baixo.
Já não há grilhões prendendo ninguém, nem senzalas ou correntes (pelo menos, não do tipo que se vê), mas o Brasil vive de crise econômica em crise econômica, e o país é imenso. Nas lavouras e nos roçados, nos vilarejos no meio do nada, esvaziados por carência de emprego, trabalhadores rurais sobrevivem mal pagos. Pingam de colheita em colheita, tal qual imigrantes estrangeiros do final do século 19. Muitos trabalhavam para pagar dívidas contraídas com o próprio empregador. Segue assim.
Na cidade grande, o trabalho análogo à escravidão está no detalhe —do zíper da calça alinhavado pelo imigrante boliviano ao patrão que oferece um quartinho à empregada doméstica de meia-idade como pagamento pela faxina.
O Brasil é dos países que mais combatem o trabalho análogo à escravidão. Políticas públicas e fiscalização tentam corrigir um problema de séculos: o passado escravocrata mantém, no imaginário e no cotidiano, relações de trabalho problemáticas e desiguais. A economia baqueada deve jogar milhões de pessoas de volta à informalidade e à fome, no mundo todo. Quando a vulnerabilidade aumenta, a função degradante aparece.
Segundo Lys Cardoso, Procuradora do Trabalho e coordenadora nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas), com dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, 231 pessoas foram resgatadas de trabalho escravo no primeiro semestre de 2020. “No ciclo do trabalho escravo, um dos elementos é a vulnerabilidade. A tendência —a gente já está se preparando para isso— é que se acentue o número de casos de violação dos direitos humanos”, diz ela.
A escravidão contemporânea resiste porque, frente à fome e ao abandono, qualquer trabalho temporário resolve. As pessoas se submetem porque não têm perspectiva, e acreditam que as longas jornadas e o esforço serão recompensados lá na frente. É um arranjo econômico global de teias emaranhadas e desigualdade social. Para muitos, o trabalho é quase um favor que o patrão faz.
RELAÇÃO ABUSIVA
“Quem mandou vocês aqui?”
Ao ser encontrada em situação de trabalho escravo em uma casa no Alto de Pinheiros, bairro nobre da zona oeste de São Paulo, uma mulher de 61 anos reagiu com xingamentos.
Ela habitava um cômodo nos fundos da casa junto a cadeiras, estantes e caixas amontoadas. Pelas fotos, o lugar mais parecia um depósito — sem banheiro, sem chuveiro quente, sem comida nem água. Os donos haviam se mudado sem que ela soubesse.
Empregada doméstica da família desde 1998, sem registro em carteira, férias ou 13º salário, ela foi recebida na casa dos patrões em 2011, após sua casa desabar. Os empregadores, então, deixaram de pagar salário. Ainda assim, durante seu depoimento ao MPT (Ministério Público do Trabalho), ela tentou preservá-los e mostrou sensibilidade, ao lembrar que um dos familiares estava doente. “Coitados”, lamentou.
O vínculo turvava a visão da doméstica e a impedia de entender aquilo pelo seu verdadeiro nome: trabalho escravo doméstico contemporâneo. “Levou um tempo. Agora ela está bem mais consciente. Mostrei a ela o depoimento dado pelos empregadores, ela ficou chocada. Disse que ali tinha muitas inverdades”, afirma ao TAB Alline Pedrosa Oishi Delena, Procuradora do Trabalho.
UMA COISA QUE ANDA E FALA
Quase 55 mil pessoas foram resgatadas de situações análogas à escravidão no Brasil desde 1995, ano em que o país reconheceu que existia trabalho escravo e assumiu o compromisso de enfrentá-lo. O que une todas as vítimas é a vulnerabilidade extrema.
Quando se fala de escravidão, há no imaginário popular brasileiro a imagem dos navios negreiros do período colonial, mas essa modalidade não sintetiza o que configura trabalho escravo, ao longo da história. “Cada época tem um tipo de escravidão. Esse é um conceito qualificado de diferentes formas ao longo do tempo. A grega não era igual à romana, que não era igual à africana entre os africanos ou à dos africanos trazidos para o Brasil”, afirma Ricardo Rezende, padre, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenador do GPTEC (Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo).
O trabalho escravo contemporâneo, contudo, envolve amarras que nem sempre são físicas. “Se a pessoa não tem um real, ou então não fala a língua do país, ela está ali, vinculada. Quanto maior a vulnerabilidade da pessoa, mais sujeita ao trabalho análogo ao escravo ela está”, afirma Delena.
As ferramentas psicológicas são diversas. A fome garante que muitos trabalhadores rurais aceitem atuar em condições desumanas. Dívidas e ameaças de morte são comuns na exploração sexual. O medo e o desamparo são fortes entres os estrangeiros ilegais que vêm ao Brasil, enganados, para trabalhar nas oficinas de costura ou na construção civil.
A população negra (pretos e pardos) é a mais vulnerável ao trabalho escravo. Mas, para além da cor da pele, há preconceitos atravessando as relações sociais com nordestinos, indígenas, paraguaios, bolivianos, haitianos e até brasileiros no exterior. “O pensamento é que um tipo de pessoa vale mais do que outro”, diz Mercia Silva, diretora executiva da InPACTO, ONG que mobiliza sociedade civil e empresas no combate ao trabalho escravo.
Na época da escravidão legalizada, o que prendia os escravizados era o fato de estarem longe de suas terras e de não terem acesso a alimento, moradia, educação ou qualquer meio de vida. Para Lys Cardoso, “a única diferença com relação à escravidão contemporânea é que, agora, a lei não permite”.
UM CÔMODO PARA CINCO
O caso de Omar Castro é como tantos outros. Motorista de caminhão-caçamba na Bolívia, deixou tudo para trás, em 2018, para vir ao Brasil com a mulher e os três filhos, trabalhar e ganhar dinheiro, com a garantia de que receberia documentos de permanência. A família acabou escravizada em uma oficina de costura na Casa Verde, na zona norte da capital paulista.
“Vivíamos todos em um cômodo, na mesma casa em que funcionava a oficina. Era dormir e trabalhar”, lembra Castro. Dormir mesmo era pouco: as jornadas encaradas por ele, esposa e o filho mais velho iam das 6h30 às 23h, com meia hora de intervalo para almoço. O salário podia chegar a R$ 900 mensais, mas era pago apenas a cada seis meses. Omar, que chegara ao Brasil endividado com os custos da viagem, precisava emprestar dinheiro do empregador para alimentação e higiene. “Depois dos primeiros seis meses, ainda estávamos devendo.”
A situação durou quase um ano, até que o empregador deixou as filhas pequenas de Omar dois dias seguidos sem almoço. A mulher dele, então, fugiu com as meninas. “Minha esposa procurou a UBS [Unidade Básica de Saúde], que era a única coisa que conhecia, e encaminharam para o Cami [Centro de Apoio e Pastoral do Migrante]. Fomos resgatados e acolhidos.”
Hoje, Omar trabalha como assistente social do Cami -fundado em 2005 para combater o trabalho escravo e que tem 90% de sua equipe formada por imigrantes, alguns resgatados como Omar. O órgão faz o acolhimento emergencial de pessoas encontradas em situação de escravidão e trabalha com a prevenção e a capacitação.
Quem vem ao Brasil por meio de tráfico é geralmente explorado em trabalhos sexuais, na construção civil e em oficinas têxteis. Na Copa do Mundo de 2014, por exemplo, houve grande afluxo para atender a necessidade de entrega das obras, segundo Carla Aguilar, também assistente social do centro.
Os estrangeiros escravizados no Brasil “perseguem um sonho que acaba virando pesadelo”, diz Aguilar. “Muitos têm medo do que pode acontecer às suas famílias nos países de origem, pois são ameaçados. Outros, dependendo de onde vieram, sentem medo de voltar. Eles se sentem culpados. Perguntam: ‘Por que isso aconteceu comigo?'”
ROÇA E EXPLORAÇÃO
A cidade de São Paulo é a segunda região com mais casos de trabalho escravo no Brasil, justamente em oficinas de costura —em grande parte lideradas por bolivianos, que traficam e escravizam outros bolivianos. Mas a maioria dos casos de escravidão contemporânea ocorre no campo, entre brasileiros.
Na mesma época em que a empregada doméstica foi resgatada em São Paulo, um homem de 61 anos foi encontrado em uma fazenda na zona rural de São José dos Campos, no interior de São Paulo. De acordo com o Ministério Público do Trabalho, ele era responsável por manejar o gado leiteiro de segunda a segunda, em jornada que ia das 5h às 18h. Sem salário, registro em carteira nem direito a férias, alimentava-se com as doações de vizinhos e voluntários.
Ele trabalhava em troca de moradia. Residia em um casebre de telhas quebradas dentro da propriedade, com a mãe de 87 anos, em situação degradante e insalubre. Não tinha geladeira, o fornecimento de água era intermitente, havia umidade e infiltrações nas paredes, e a fiação estava em condições precárias.
“Só em 2019, 87% das ocorrências aconteceram no campo. Isso está muito ligado à nossa raiz escravocrata e uma base econômica fundada no trabalho escravo e nos latifúndios”, avalia Lys Sobral Cardoso. As regiões líderes em casos de trabalho escravo no país são o sul e o sudeste do Pará.
“Trabalhei muito no Pará, no Maranhão, em Rondônia e no sul do Amazonas. São áreas onde começou o enfrentamento sério ao trabalho escravo no país, em 1995. Houve melhora, mas a fronteira agrícola é dinâmica, e o trabalho acompanha esse ciclo. Os trabalhadores têm alguma noção de que estão sendo explorados, mas não sabem seus direitos”, explica o auditor-fiscal André Esposito Roston. Com uma equipe mista, ele viaja o país fazendo fiscalização e resgate de vítimas.
SENTIMENTO DE PRECISÃO
O retorno de trabalhadores resgatados ao trabalho escravo não é raro, segundo a procuradora Lys Sobral Cardoso. “As políticas públicas não são suficientes para emancipá-los. Então, eles voltam para aquele ciclo de exploração. E, muitas vezes, para o mesmo empregador.”
Após o resgate, os trabalhadores normalmente recebem salários, direitos trabalhistas e danos morais –negociados de forma extrajudicial pelos integrantes do Grupo Móvel com os empregadores. Quando o dinheiro acaba, não há outra opção senão retornar. “É o que eles chamam de ‘precisão’. Aquele trabalhador deixa mulher e filhos em casa, chorando famintos. Isso explica essa submissão, essa resiliência. A outra alternativa, muitas vezes, é morrer de fome”, afirma Roston.
Segundo o auditor-fiscal, o Brasil é possivelmente o único país que estruturou e levou a cabo uma política centrada na garantia de direitos da vítima e na responsabilização econômica dos empregadores, o que tem provocado uma mudança de conduta.
Já aconteceu de Roston resgatar duas vezes o mesmo trabalhador. Mas também houve casos em que ele voltou ao local de fiscalização e encontrou tudo diferente. Ele se lembra de uma operação em Marabá, no Pará: ao vistoriar uma fazenda, ouviu do capataz que há anos havia sido resgatado por ele naquele mesmo local. O empregador tinha o chamado de volta, agora com carteira assinada. “Aquela operação me emocionou e me ensinou o sentido mais profundo daquele trabalho: transformar a realidade. O capataz continuava em uma função simples, mas passou a ser reconhecido como cidadão.”
MULHERES E CRIANÇAS
No mundo, segundo a OIT, 71% das vítimas de trabalho escravo contemporâneo são mulheres. No Brasil, os dados apontam apenas 5%. Para especialistas, a diferença gritante entre os índices é resultado da subnotificação.
O casamento forçado, o trabalho doméstico e a exploração sexual são os tipos de escravidão mais comuns no mundo. No Brasil, há poucos relatos de casamento forçado e, por isso, ele é quase desconsiderado. A falta de regulamentação da prostituição também dificulta sua classificação como trabalho forçado ou análogo à escravidão.
“Estamos lidando com vítimas, não com transgressoras. Na lei existe o crime de cafetinagem, portanto, nesse caso, quem comete o crime é o empregador. Há uma postura deliberada e discriminatória de não garantir os direitos trabalhistas das profissionais do sexo. E sem respaldo na lei”, afirma o auditor-fiscal Roston.
Já o trabalho escravo doméstico é difícil de ser fiscalizado por acontecer em ambientes privados. Por vezes, ele acaba sendo tipificado como cárcere privado. “Se um grupo de homens é resgatado e, entre eles, houver uma mulher cozinheira, pode acontecer de ela ser a única a não receber direitos trabalhistas, porque as autoridades não entendem aquilo como trabalho”, explica Natália Suzuki, coordenadora do programa Escravo, Nem Pensar!, da ONG Repórter Brasil.
O trabalho infantil é outro ponto delicado do trabalho escravo contemporâneo. Em um relatório de 2017, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) identificou que uma em cada quatro vítimas de exploração tinha menos de 18 anos. Outro relatório da organização aponta que 92% dos trabalhadores rurais encontrados em situação análoga à escravidão começaram a trabalhar antes dos 16 anos. A média de idade do primeiro emprego é de 11 anos.
A NORMALIDADE É CRUEL
Com a Covid-19, a crise econômica e o desemprego, o problema do trabalho escravo pode se agravar, diz a psicóloga Bianca Pistório, doutoranda em Saúde Coletiva na UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso). Ela investiga os efeitos das condições degradantes de trabalho em vítimas resgatadas e descobriu problemas persistentes: depressão, ansiedade, alto consumo de álcool e de tabaco, uso de medicações psicotrópicas e tentativas de suicídio. Alguns trabalhadores ficaram incapacitados de voltar ao mercado.
A erradicação do trabalho escravo contemporâneo passa por uma profunda mudança de pensamento e, claro, por políticas públicas. “A naturalização é nossa pior inimiga”, avalia Xavier Jean Marie Plassat, coordenador da Comissão Pastoral da Terra. “Libertar o trabalhador é o primeiro passo, mas o processo tem que ser continuado, amparado por políticas públicas e por ações específicas que permitam a ele não cair de novo na mesma situação.”
“Falar em reforma agrária é um estigma no Brasil, mas isso nunca foi feito no país. A gente vive com uma concentração imensa de riquezas e propriedades. E as pessoas acabam caindo nas periferias, no trabalho escravo na construção civil, nas funções domésticas. Se o Estado apoiar iniciativas de cooperativas, se elas se organizarem e tiverem meios, elas vão se fixar”, acredita Lys Sobral Cardoso.
Segundo Plassat, muitos dos trabalhadores têm o sonho da terra própria. “Não vamos resolver a questão do trabalho escravo arrancando-os da sua cultura rural. É importante respeitar os sonhos desses trabalhadores, um sonho rural. Um sonho de cuidar da terra e do meio ambiente.”
*As imagens usadas neste TAB são flagrantes reais de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão.