Para erradicar a escravidão contemporânea, é preciso mais do que a Lei Áurea

Câmara dos Deputados tem a chance de aprovar hoje lei que pode reforçar o combate ao trabalho escravo no Brasil

Nos últimos dias 8 e 9, a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001 esteve prestes a ser votada na Câmara dos Deputados. Congressistas avessos à sua aprovação, no entanto, conseguiram um adiamento, a forma mais elegante de defender os interesses da classe ruralista e, assim, perpetuar a escravidão contemporânea no país. Com um misto de indignação, frustração e incredulidade, restou à sociedade brasileira a indefinição a respeito uma das medidas mais importantes para a erradicação dessa prática criminosa. A nova votação está marcada para hoje, dia 22, terça-feira.

A PEC 438 incomoda por abalar a estrutura fundiária imposta ao campo há mais de 500 anos no país. A expropriação e confisco da terra daqueles que empregam trabalho escravo em suas propriedades, sem direito à indenização, contraria a lógica da organização fundiária e, sobretudo, a da impunidade. A Constituição de 1988 já condiciona o direito à propriedade ao cumprimento da sua função social, prevendo a possibilidade de desapropriação, mas com indenização ao fazendeiro.

Sagaz e habilidosa, membros da bancada ruralista não apenas trataram de unir esforços para postergar mais uma vez a votação da PEC, como também tentaram colocar em xeque aquilo que há muito já está consolidado: o conceito de trabalho escravo contemporâneo.

O artigo 149 do Código Penal define claramente que a prática é crime. A lei deixa explícito que submeter alguém a condições análogas a de escravos é cercear a sua liberdade por meio de ameaças, endividamento e isolamento e/ou submeter trabalhadores a condições degradantes. Condições degradantes não significam dar colchão fino para o trabalhador ou deixar de lhes fornecer copos plásticos e, muito menos, não assinar a carteira de trabalho, mas se referem a situações desumanas de trabalho que atentam contra a dignidade do indivíduo.

Crédito: Leonardo Sakamoto

Crédito: Leonardo Sakamoto

Desde 1995, quando o governo brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo, mais de 42 mil trabalhadores foram libertados, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).  A fiscalização permite que fazendeiros sejam indiciados criminalmente por empregar mão de obra escrava, como aconteceu com um senador neste ano, quando o STF o colocou no banco dos réus por aliciar e empregar 35 pessoas em regime de escravidão no interior do Pará. A Organização Internacional do Trabalho avalia que o Brasil vem criando mecanismos inovadores e coerentes com as determinações dos tratados internacionais dos quais é signatário. Esses instrumentos, entre os quais o artigo 149, são considerados referências para outros países.

A partir do conceito vigente e com a participação e esforço da sociedade civil, políticas públicas de prevenção, assistência à vítima e repressão têm sido criadas; casos foram julgados, criando jurisprudência em diversas instâncias da rígida estrutura judiciária. Tudo isso sem que houvesse qualquer dúvida sobre a definição do trabalho escravo contemporâneo, agora contestada.

Hoje, os escravos não são acorrentados no tronco ou açoitados no pelourinho. Mas como classificar, senão como escravidão, a condição desumana a que milhares de trabalhadores são submetidos? Reduzir violações de direitos humanos, como a superexploração do trabalho, o cerceamento de liberdade, as ameaças de morte e os castigos exemplares a irregularidades trabalhistas é algo descabido. Portanto, não cabe apelar para que uma nova princesa Isabel venha ao Congresso com uma pena em punho para reafirmar a Lei Áurea. É preciso mais que isso.

Nos últimos oito anos, a ONG Repórter Brasil, por meio do programa “Escravo, nem pensar!”, desenvolve trabalho de prevenção por meio da educação em cinquenta municípios onde há grande quantidade de casos de aliciamento e trabalho escravo. Um dos maiores desafios tem sido desnaturalizar nas comunidades o processo de exploração que há séculos está arraigado em determinadas regiões do país, onde o coronelismo deixou raízes profundas. Como é possível o trabalhador se reconhecer como vítima de um sistema atroz se mais uma vez dizemos que a única escravidão existente é aquela que o prende por correntes? Como é possível, então, ele superar a sua condição indigna se alguns deputados insistem em lhes privar de instrumentos jurídicos?

Condicionar a discussão da PEC 438 a uma revisão do conceito é retomar uma discussão já superada e abandonar todas as conquistas dos últimos vinte anos.  A relatora especial da ONU para Formas Contemporâneas de Escravidão, Gulnara Shahinian definiu a PEC como “o instrumento legal mais poderoso de combate ao trabalho escravo no Brasil”. Esse mecanismo é capaz de fazer o país vencer a impunidade dos escravagistas, uma das principais lacunas das estratégias de combate à escravidão contemporânea.

A luta por garantia dos direitos humanos se faz a passos lentos, mas nem por isso deixamos de fazer a caminhada. Nesse momento, retornar ao ponto de partida e rejeitar a estrada que trilhamos às custas do suor de milhares trabalhadores não é uma opção.

Carolina Motoki e Natália Suzuki são coordenadoras do programa de educação “Escravo, Nem Pensar!”, da ONG Repórter Brasil

Daniel Santini é editor da Agência de Notícias da ONG Repórter Brasil