Jornal do Campus: Lei vigente não inibe escravidão contemporânea

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Dados recentes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) estimam que 42 mil pessoas foram libertadas de condições análogas à escravidão de 1995 a 2010. Denúncias na imprensa expõem condições degradantes das quais trabalhadores são libertados – como em ambientes precários, sujos, com jornadas exaustivas, salários irrisórios e coerção física e mental por meio da violência –, tanto no campo, onde a prática era mais realizada, quanto nos centros urbanos, onde tem crescido principalmente na forma de oficinas clandestinas da indústria têxtil.

O sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, José de Souza Martins, afirma que o Brasil vive o período de uma terceira escravidão, por dívida, também chamado de peonagem, e o da sobreexploração do trabalho. Em depoimento perante a CPI do Trabalho Escravo, no dia 18 de abril deste ano, o professor relata que mesmo com relações de trabalho que se dão de forma contratual, livre e igualitária, as bases econômicas atuais remetem, histórica e estruturalmente, àquelas em que a escravidão vigorava, de acumulação primitiva de capital e concentração de terras. Para Martins, “a opção fundiária brasileira criou as omissões legais que deram oportunidade ao surgimento de novas formas de servidão nos interstícios do trabalho livre”.

Com a expansão das fronteiras agrícolas baseadas em incentivos fiscais, principalmente nos anos 1970 e 1980, este terceiro tipo de escravidão, exposta por Martins, tomou força. De acordo com dados do programa “Escravo Nem Pensar” da ONG Repórter Brasil, que atua na área de combate ao trabalho escravo, as principais atividades em que ele ocorre são: pecuária, produção de carvão, cultivos de cana-de-açúcar, de soja e de algodão.

Na cidade e no campo

Segundo a procuradora-chefe substituta do Ministério Público do Trabalho (MPT), Sandra Lia Simón, o trabalho escravo urbano se dá normalmente em pequenas oficinas da indústria têxtil, que empregam normalmente bolivianos arregimentados já em seu país, e vivem em “condições degradante de trabalho”.

A procuradora explica que quando o MPT recebe uma denúncia, é acionada uma rede de atuação. “Normalmente esta denúncia vem ou do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), de alguma ONG ou instituição da sociedade organizada, e assim que nós a recebemos fazemos uma visita in loco”.

Em junho de 2011, uma destas operações flagrou condições análogas à escravidão em duas oficinas na capital paulista que fabricavam peças para a marca a Zara. Foram libertadas 15 pessoas, em sua maioria estrangeiros. Segundo reportagem da Repórter Brasil de agosto de 2011, os trabalhadores encontrados enfrentavam jornadas de até 16 horas por dia, cerceamento de liberdade, necessidade de autorização do empregador para deixar o local, trabalho infantil e ambiente precário e inseguro. Todas são características que enquadram esta prática como crime, de acordo com o artigo 149 do código penal.

Sandra Lia Simón conta que o MPT descobriu que grandes lojas como Gregory, Collins, Pernambucanas e outras estavam por trás destas confecções, quando uma das operações flagrou oficinas clandestinas colocando as etiquetas nas roupas, evidenciando a contratação terceirizada naquelas condições.

A Zara assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), documento que prevê o cumprimento das obrigações trabalhistas, comprometendo-se a se responsabilizar pelas condições das confecções e a aplicar mais de R$ 3 milhões em um fundo que promove atividades contra combate ao trabalho escravo.

“Esta é uma atuação inovadora, porque a gente tenta responsabilizar a grande empresa, que tem que de fato ser responsável por aquelas que contratam para fazer seu produto”, relata a procuradora Sandra Lia, sobre a iniciativa de responsabilizar as empresas por meio dos TACs, que vigora desde o ano passado.

As empresas, quando questionadas sobre sua responsabilidade trabalhista em relação às confecções clandestinas, “dizem que não precisam saber disso”, afirma a procuradora. Segundo o sociólogo José de Souza Martins, “a terceirização facilita o recrutamento de trabalhadores e a organização racional do trabalho das empresas que de seu trabalho se valem. Mas transfere as responsabilidades trabalhistas para terceiros.” E continua:”a beneficiada quer o seu lucro e a terceirizada também. O sobrelucro alimenta a sobreexploração do trabalho, pois o salário propriamente dito a ser pago ao trabalhador acaba sendo uma quantia residual daquilo que a empresa principal está disposta a pagar pelo trabalho de que carece.”

No campo, por sua vez, as condições de escravidão também são de servidão por dívida, mas existem empecilhos ainda mais difíceis de flagrar e coibir, devido ao afastamento geográfico das fazendas em que a prática ocorre e da situação sócio-econômica que deixa os trabalhadores vulneráveis aos “gatos”, os aliciadores deste tipo de mão-de-obra.

Os estados que apresentam os maiores índices são Bahia, Piauí, Maranhão, Tocantins, Mato Grosso e Pará, de acordo com dados do Programa “Escravo Nem Pensar” ; 95% dos arregimentados para mão de obra escrava são homens e dos trabalhadores que são libertos, 71 % deixaram a escola depois de quatro anos de estudo.

Natália Suzuki, cientista social e jornalista da Repórter Brasil, afirma a necessidade de ações coordenadas entre as várias entidades engajadas no combate ao trabalho escravo. “Não é ação de um só ator. Existem muitas iniciativas, mas se isoladas elas perdem o potencial”, argumenta. Segundo ela, é necessário prestar atenção nas condições às quais o trabalhador retorna depois que é libertado, para que “não volte a cair na rede”.

“A reescravização mesmo de vítimas libertadas da escravidão é favorecida pela quase certeza da impunidade, apesar do enorme esforço do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho para localizar as ocorrências, libertar os trabalhadores, assegurar-lhes os benefícios do direito e enquadrar os responsáveis”, explica o sociólogo José Martins. “As condições de vida adversas das vítimas favorecem a reescravização, porque são vulneráveis. Tem havido casos em que, na hora em que chegam os fiscais, os trabalhadores recusam a libertação e fogem para o mato”.

Sandra Lia acredita que a legislação atual não é efetiva na inibição do trabalho escravo, “porque não há uma punição adequada para quem lança mão da exploração do trabalho. O que nós precisamos é melhor responsabilização criminal, porque o artigo 149 do código penal delimita bem o que é trabalho escravo, mas não há condenações criminais, individualmente falando, que sejam dignas de inibir a prática”.

Para Natália, a questão que a PEC 438 trata, ao propor a expropriação das terras em que há trabalho escravo para uso social, é “uma forma de reverter a lógica da concentração de terra e da impunidade. O fazendeiro pode perder aquilo que tem de mais caro, a propriedade”.

Educação preventiva

O programa “Escravo Nem Pensar”, da ONG Repórter Brasil, atua na educação de professores da rede pública e de lideranças comunitárias nas regiões onde mais se constata a incidência de trabalho escravo. Duas equipes, em Araguaína (TO) e São Paulo (SP), ministram cursos de 40 horas durante uma semana para o público que acreditam ter maior potencial multiplicador. O curso já formou 2.500 pessoas em 46 municípios.

Natália Suzuki, coordenadora do programa, diz que ele busca conscientizar o trabalhador para evitar que ele volte à condição análoga à escravidão. “É uma forma de despertar, para olharem estas questões que já são tão naturalizadas no dia a dia e que acabam deixando de ser problematizadas”, diz.