Discurso de premiação da Medalha Chico Mendes, concedida à Repórter Brasil na categoria “trabalho escravo”, pelo Grupo Tortura Nunca Mais-RJ.

Por Natália Suzuki

Em nome da Repórter Brasil, gostaria de agradecer o Grupo Tortura Nunca Mais, por termos sido premiados na categoria de combate ao trabalho escravo. É uma honra compartilhar a noite com os demais premiados, pessoas tão ilustres, que dedicaram e dedicam as suas vidas à proteção dos direitos humanos.

Entre 1995, quando o trabalho escravo foi reconhecido no país, e o ano passado, foram 47 mil trabalhadores resgatados de situações degradantes. Alojamentos inabitáveis, alimentos intragáveis e água contaminada são alguns elementos que compõem a condição diária de milhares de trabalhadores espalhados pelo país.

Diante desse contexto, desde 2001, a equipe da Repórter Brasil tem se dedicado ao combate dessa prática vergonhosa.

Consideramos que a mídia é um instrumento fundamental para tornar pública a situação indigna dos trabalhadores escravizados. É por isso que, por meio de reportagens, documentários e pesquisas, temos denunciado e pressionado o governo a adotar políticas públicas para a erradicação do problema e pressionado também a iniciativa privada a ser responsiva com a sua cadeia produtiva.

Muitos homens e mulheres perdem as suas vidas na frente de trabalho em pleno século 21. Não basta, portanto, apenas resgatá-los, é preciso primordialmente evitar que trabalhadores e trabalhadoras passem por essa experiência traumática e desumana. Por isso, a Repórter Brasil desenvolve um programa educacional de prevenção ao trabalho escravo nos locais o aliciamento e o uso de mão de obra escrava são frequentes. Em dez anos, alcançamos mais de 140 municípios e impactamos diretamente mais de 200 mil pessoas. No entanto, isso não tem sido suficiente.

Até há pouco tempo, pensávamos que a ocorrência do trabalho escravo estava restrita a localidades das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste em que a vulnerabilidade socioeconômica era preponderante.  No entanto, em 2013, as estatísticas nos apresentaram uma nova realidade: naquele ano, houve mais casos de trabalho escravo urbano – especialmente na construção civil e no setor têxtil – do que nas zonas rurais, onde tradicionalmente o problema era encontrado.

Diante disso, vimos que o nosso escopo de atuação precisa ser ampliado cada vez mais e nem sempre os braços e pernas da sociedade civil dão conta dessa dimensão.  Após 20 anos de combate, o balanço que fazemos, infelizmente, não é dos mais promissores. Houve muitas conquistas, mas há também muito retrocesso.

Ficamos muito felizes com a premiação da Medalha Chico Mendes, especialmente porque esse ano de 2015 se iniciou um tanto tenebroso e temeroso para os atores governamentais e não governamentais, envolvidos com o combate ao trabalho escravo no Brasil.

No apagar das luzes de 2014, em 27 de dezembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal suspendeu por liminar a publicação da lista suja. Essa lista é o cadastro das propriedades em que se comprovou o uso de trabalho escravo.

A Lista Suja é especialmente importante não somente pelo seu valor simbólico, por ser um documento em que o Estado torna público os violadores de direitos humanos, mas porque é o instrumento que instituições financeiras utilizam para não ceder crédito a escravagistas e para que empresas evitem comprar matéria prima produzida com trabalho escravo.

Para a sociedade civil, que vem fazendo um trabalho hercúleo nas áreas de prevenção e assistência à vítima, esse retrocesso soa como um deboche lamentável.

Como é possível contestar a existência de uma violação tão óbvia e indigna? Há quem o faça. Não somente os proprietários flagrados por usar esse tipo de mão de obra se recusam a reconhecer que cometeram o crime, mas há também representantes no Congresso Nacional que refutam o conceito contemporâneo de trabalho escravo e se esforçam para alterar a sua tipificação no Código Penal e, por assim, esvaziá-lo.

O Brasil já foi considerado um país modelo pelo seu combate ao trabalho escravo. Hoje estamos paulatinamente retrocedendo em aspectos que são básicos nessa luta. Não é possível prescindir do papel e da responsabilidade do Estado. Ele deve assumir a sua obrigação nesse contexto e não se eximir com justificativas lacônicas.

No entanto, quero lembrar que a defesa por direitos humanos não se faz apenas na macropolítica, porque isso poderia nos tornar cínicos ou mesmo frustrados.

Lutar pelos diretos humanos quase nunca será entendido um feito heroico, quase nunca será reconhecido.

Lutar pelos direitos humanos é essencialmente sairmos na nossa zona de conforto e contrariar o senso comum. É assumir responsabilidades além do que requer o nosso trabalho e o nosso papel de cidadão. E, nesse contexto, inevitavelmente nos confrontaremos com o diverso, com o polêmico, com o marginal.

Assumir a luta de direitos humanos é assumir uma postura cotidiana e sensível contra as injustiças e as desigualdades.

Obrigada.