Capacidades estatais nas políticas para imigrantes e refugiados no contexto de pandemia

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

Thaís La Rosa, coordenadora executiva do CDHIC, psicóloga e internacionalista, mestre em Resolução e Mediação de conflitos interculturais

Natália Suzuki, cientista política e coordenadora do programa Escravo, nem pensar da ONG Repórter Brasil

João Chaves, defensor público federal

Camila Barrero Breitenvieser, mestre em Administração Pública e Governo pela FGV, coordenadora da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo

Beatriz Soares Benedito,  mestra em Políticas Públicas pela UFABC e integrante do Núcleo de Estudos da Burocracia

A pandemia de COVID-19 exigiu dos governos novos arranjos institucionais e o desenvolvimento de capacidades estatais para que a distribuição de benefícios e atendimento em serviços públicos alcançasse a população. A dinâmica entre usuários e trabalhadores de políticas públicas essenciais para a diminuição de desigualdades sociais em grupos historicamente vulnerabilizados, como é o caso de imigrantes e refugiados, foi afetada pelas recomendações para o combate do novo coronavírus, como a do distanciamento social.

A alteração desta dinâmica é marcada, por exemplo, pela diminuição do quadro de funcionários dos serviços da assistência social e pelo desenvolvimento de  diferentes metodologias por professores e estudantes em um contexto de precário acesso tecnológico. Neste cenário, os trabalhadores dos serviços de acesso à justiça e documentação, que além de promoverem direitos também são a porta de entrada de muitos migrantes internacionais e refugiados nas políticas, tiveram que desenvolver, juntamente com suas chefias, novas habilidades para atuação em um contexto inédito e com necessidades imediatas.

Historicamente, no que diz respeito aos processos de regularização migratória no Brasil foram pautados por uma tradição cartorial, mais similar às diversas formas de autorizações e permissões do direito administrativo, do que ao acesso a um direito básico. Em contraposição, a Lei de Migração de 2017, foi benéfica às pessoas migrantes ao estabelecer um modelo vinculante para a maioria das formas de autorização de residência, com requisitos objetivos. Ou seja, se forem apresentados documentos constantes em um checklist (determinados por normas previamente estabelecidas), a autorização é, em regra, concedida no momento do atendimento.

Porém, o rigor formal na análise documental e a exigência de itens excessivos são entraves significativos. Em quase todos os casos de regularização documental, a pessoa migrante deve apresentar certidão de antecedentes criminais de seu país de origem, e, nem sempre é possível produzir esse documento, seja por falta de representação consular do país de origem no Brasil, seja pelo prazo do documento existente não obedecer a validade estabelecida como seguro pelo Departamento de Polícia Federal. Há, ainda, outros entraves como a exigência de passaporte para a obtenção de autorização de residência de migrantes vítimas de trabalho escravo ou tráfico de pessoas, quando a retenção de documentos é um dos meios de coerção de aliciadores e exploradores dessas pessoas.

Esse histórico se evidenciou no início da pandemia, em que o procedimento para a validação do CPF exigia que o imigrante fosse pessoalmente a um posto da Receita Federal e apresentasse um documento brasileiro, comprovando o seu status migratório. Na época, ainda que a Polícia Federal afirmasse que um documento de identificação do país de origem poderia ser usado para todo o processo de solicitação do auxílio emergencial, o imigrante enfrentava um duplo desafio. Primeiro, deveria conseguir um atendimento presencial na Receita e explicar a sua condição, já que a maior parte dos postos estava atendendo apenas remotamente. Se superasse essa etapa, teria que convencer uma agência da Caixa Econômica a aceitar o seu documento do país de origem para abrir uma conta bancária e, então, poder sacar o recurso.

Deste modo, é importante que os processos de regularização migratória busquem meios de compatibilizar segurança com eficiência, para que exames visuais de documentos possam dar lugar a verificações online, diminuindo o fluxo de pessoas nas estruturas da Polícia Federal e o drama de percorrer diversos locais – consulados, centros de apoio ao imigrante, cartórios – para a formação de processos físicos em um momento de intensa demanda por virtualização do serviço público.

Nesse sentido, o contexto da pandemia da COVID-19 impôs às instituições públicas a urgência de adequações procedimentais pouco triviais. Ou seja, para que as políticas públicas alcançassem os seus beneficiários, os trabalhadores foram obrigados a rever dinâmicas e processos sedimentados nas suas estruturas burocráticas. Pode ser citado como exemplo a digitalização e a virtualização procedimental. É o caso da emissão e regularização de CPF pela Receita Federal que passou a ser feita remotamente também para imigrantes e refugiados. Este tipo de mudança subverteu a noção que tínhamos do tempo necessário para a formulação e implementação de uma política pública. Um processo que poderia durar anos foi bruscamente abreviado em meses, e isso gerou, ao mesmo tempo, consequências deletérias, mas também resultados profícuos e aprendizados.

Evidencia-se neste processo de supervirtualização dos fluxos organizacionais, soluções institucionais que respondem às demandas dos migrantes e refugiados por um lado, mas que apresentam novos problemas por outro: a adaptação de parte dos serviços que são oferecidos pelas organizações para um formato remoto, ao mesmo tempo em que garantem que os serviços continuem ocorrendo em tempos de distanciamento, evidenciam o caráter excludente das tecnologias sobre a população migrante e refugiada.

É importante ressaltar que no caso de migrantes internacionais e refugiados, as violências xenófobas e racistas também têm marcado este período de supervirtualização. O pensamento de escassez que se instaurou devido ao medo do adoecimento e da falta de recursos trazidos pela pandemia agravou a relação de brasileiros avessos aos processos migratórios e às pessoas migrantes. Ataques raivosos contra migrantes, apesar de não ser um fenômeno que nasce com a pandemia, parece ter sido exponenciado durante o contexto.

Ademais, o excesso de contato interpessoal via tecnologia nos priva de uma leitura de mundo que só é possível quando feita pessoalmente. A comunicação, primordial para a manutenção das relações sociais, se encontra confinada às telas e às vozes limitando, assim, uma interpretação de sinais corporais e ambientais que contribuem para um processo de comunicação eficiente e íntegro entre usuários de políticas públicas e trabalhadores. Quando consideramos as diferenças culturais que atravessam o discurso e o comportamento de todos nós, torna-se ainda mais visível a lacuna deixada pela supervirtualização.

Se por um lado há uma supervirtualização das relações entre trabalhadores e usuários de políticas públicas, por outro, importa dizer que a participação social é e deve ser parte da gestão de políticas públicas, uma vez que por meio da atuação de organizações (e pessoas) da sociedade civil enquanto atores políticos se estabelecem mecanismos de controle social da burocracia do estado e das políticas desenvolvidas, fortalecendo a democracia e as instituições democráticas.

Na cidade de São Paulo, a cidade com o maior número de pessoas migrantes e em situação de refúgio do país, estão previstos mecanismos de participação social na política local. Os principais mecanismos são o Conselho Municipal de Imigrantes (CMI) e a realização de conferências municipais periodicamente. Já foram realizadas duas conferências (2013 e 2019) com ampla participação de migrantes e que elencaram propostas consideradas prioritárias para a determinação das ações municipais.

O CMI é um órgão paritário composto majoritariamente por imigrantes e de forma paritária entre poder público e sociedade civil, Associado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o CMI tem como competência, entre outras, a participação na formulação, implementação, monitoramento e avaliação da Política Municipal para Imigrantes (Lei Municipal nº 16.478/2016).

Se a participação social é imprescindível para a construção de políticas públicas em contextos não excepcionais, durante situações críticas como é o caso da pandemia do novo coronavírus, a articulação com atores sociais diversos como as organizações de apoio e, sobretudo, de lideranças migrantes e refugiadas torna-se ainda mais fundamental. Isso porque, diante de situações como estas, a interlocução destes agentes com as populações mais vulnerabilizadas e com as estruturas públicas que têm maior capacidade de resposta potencializa ações mais eficazes. No caso da cidade de São Paulo, a existência prévia do Conselho Municipal de Imigrantes aumentou as possibilidades de articulação e construção de respostas conjuntas entre o poder público e a sociedade civil. O Conselho tratou do tema da pandemia em suas reuniões, criou um grupo temático interno específico para lidar com a questão, emitiu ofícios para a Caixa Econômica Federal e para a Receita Federal relativas aos impedimentos de acesso ao auxílio emergencial e de regularização de documentos, fortaleceu a campanha pela regularização migratória ampla tendo apoiado formalmente o  PL 2699/2020 que tramita na Câmara Federal, apoiou a tradução de materiais informativos sobre o coronavírus e o acesso ao auxílio emergencial, e possibilitou a aderência de organizações do CMI ao Programa Cidade Solidária da Prefeitura Municipal de São Paulo e a subsequente distribuição de cestas básicas para migrantes e refugiados.

Nesse sentido, a atuação em rede em um contexto de supervirtualização, como apontamos até aqui, apresenta diversos e novos desafios. Muitas políticas voltadas a imigrantes e refugiados são intersetoriais e para que sejam profícuas dependem da articulação entre instituições. Historicamente, e sobretudo nesse contexto de emergência, esse diálogo nem sempre ocorreu. O acesso ao auxílio emergencial por imigrantes é um exemplo disso: embora a Polícia Federal tenha prorrogado os prazos de vencimento dos documentos, ainda assim as dificuldades se colocam ao migrante internacional que apresenta um documento com aparente data expirada ao tentar sacar o recurso proveniente do auxílio emergencial.

Desta forma, os aprendizados obtidos nesse contexto de pandemia devem se tornar capacidades estatais para construção de políticas públicas melhores e com novos paradigmas no pós-pandemia:

  • Os procedimentos previstos para documentação desta população devem ser revistos, juntamente com normativos e legislações que os apoiem;
  • A supervirtualização das dinâmicas de trabalho exige maior investimento psíquico para os trabalhadores da linha de frente de políticas públicas;
  • A participação social deve ser potencializada para que as tomadas de decisões sejam feitas de forma mais acertada, inteligente e articulada posto que a escuta das demandas sociais e a busca conjunta por soluções que envolvem atores diversos pode incutir maior aderência da população e consequentemente maior eficiência das soluções encontradas.
  • A articulação interinstitucional deve ser adensada de forma a promover a efetividade das políticas públicas para migrantes e refugiados